quarta-feira, 4 de abril de 2012

Seguindo uma ideia do Victor Barbosa, vou postar aqui um entrevista meio literária-poética que fiz pra um trabalho da UFPI (pra quem não sabe dos outros estados eu faço COMUNICAÇÃO-jornalismo):


Entre madeiras e palavras

O Mercado Velho de Teresina tem personagens que só encontramos em lugares como esse, antigo e cheio de histórias. Por entre seus corredos velhos e sujos, impreguinados por seus aromas peculiares e por almas velhas e cansadas, encontramos uma figura calada e soturna, de mãos calejadas e de olhos experientes; olhos de quem já viu muita coisa na vida.
Chegamos de mansinho, pra puxar um “dedo de prosa” e uma cara amarrada rodeada de santos e carancas nos recebe. À atmosfera de um pequeno box todo branco, cheio de aparas de madeira e cheiro de tinta, torna tudo sureal, mas logo as palavras de boas-vindas lhe sobem a boca e um sorriso mais jovem do que os olhos vem aos lábios resecados pela idade.
Sentado em uma cadeira velha com um pedaço de madeira nas mãos, que logo vai se transformar no objeto de fé de algum devoto fervoroso, é que encontramos Mestre Luiz, muito bem vestido, com uma camisa de manga longa, calça social e sapato muito bem engrachado. Entre risos e farpas de madeira, com sua voz abafada, Mestre Luiz vai contando um pouco da sua história junto ao Mercado Velho.

Perguntamos logo se ele é daqui de Teresina, sobre sua família e seu trabalho. Ele sempre calmo mas muito prestativo se mostra um conversador e vai desfiando sua vida para nos, isso sem deixar de prestar atenção ao seu trabalho:
---- Sou daqui mesmo. Trabalho com artesanato a 41 anos. Tenho essa loja aqui no Mercado Velho à 22 anos. Essa madeira que eu uso é o cedro, to fazendo um pé, um ex-voto pra uma moça. Trabalho com arte santeira.
Quando pergunto se seus filhos também trabalham com artesato, ele responde meio triste:
---- Só eu na familia trabalha com isso, meu filho tem esse dom não. Só eu mesmo, sou auto-didata, aprendi no interior trabalhando na roça com meu pai. As vezes via uma raíz ou algo assim, e tentava resgatar aquilo que eu via dentro dela, aí descobri que tinha o dom, me profissionalizei.
Empolgado com a conversa, começa a falar de eventos e exposições que já participou, inclusive em outros países:
---- Nunca trabalhei em outra coisa, só com isso mesmo. Minhas peças tem reconhecimento a nível nacional e internacional, já participei de exposições no Chile, Argentina nos EUA. Eu fui pro Chile. Tem gente que apoia, quando você é convidado pra uma exposição dessas, você praticamente com tudo pago, vai de ajuda de custo de 70% que fica a cargo do outro país, e aí a gente vai com tudo garantido.
Mestre Luiz ainda diz mais sobre essa experiencia de ir a outros países e sobre o que aprendeu lá:
---- E foi uma coisa muito boa pra mim porquê, tive uma experiência a mais, em um país totalmente diferente daqui, uma experiência de intercâmbio entre artesãos, porque a gente passa a ter contato de vez em quando, e isso cresceu muito porque eu passo pros outros artesãos, o que eu vi e aquilo que eu aprendi. O que eu ensinei lá, porque você aprendi muito mais quando ta ensinando, do que quando tão te passando as coisas, então eu aprendi muito com o pessoal de lá. Sempre tem contato com quem conheci lá, agora mesmo recebi uma máquina de lixar, ela veio da Bolívia direto do Chile.
Entre uma lasca de madeira e uma ajeitada na cadeira ele vai falando no seu modo simples mais sobre suas experiências internacionais:
---- Esse programa de exposição é do governo. Nos Estados Unidos era pra eu ter ido mais de uma vez, mas aquele período de visto, aí não consegui o visto, porque tava dando aquele “podrema né”?, aí sei que nois não “conseguimu”, mas nois tem sempre esse apoio. Eu conheci o artesanato na área santeira, do mundo, “né” só do Brasil e Argentina não, de nível mundial. Na Argentina, eles são muito educados, solidários, prestativos a gente, não deixa você só, porque ta aprendendo os traços da gente. ---nesse momento ele fala com orgulho e respeito, mas sem nunca tirar os olhos do pedaço de madeira em suas mãos--- Piauí é o artesanato mas rico que existe na fase da terra, na área da arte santeira, todos os países tem a sua, mas os primeiros lugares era pra arte piauiense. Aqui nois somos 4 mil artesão, na área de arte santeira são só 200, Teresina ta entre os melhores. Eu sou um, Mestre Expedito é outro, tem o Mestre Cornélio, que também é bom, Mestre Dinho e Mestre Costinha). Lá em Parnaíba também tem artesão bom demais, em Pedro II tem um dos melhores o Mestre Araújo.

Sem deixar a gente falar, ele vai logo emendando a conversa:
---- Eu trabalho muito em peça regional, mas me especializei na parte santeira, principalmente São Francisco. Eu recebo muita encomenda, inclusive eu to fazendo um São Francisco de 1,65 de altura, fazendo lá no meu sítio na Taboca do Pau Ferrado, bem aí depois do Todos os Santos. O material eu tenho lá, os cedros. Faço trabalho com restauração também, tem 4 baús aí pra eu restaurar.
Conversa vai. conversa vem Mestre Luiz, vai terminando seu trabalho e conversando conosco. Não se faz de rogado e responde tudo que o perguntamos, e até o que não perguntamos:
---- Aqui no Mercado Velho só tem eu mesmo que faz esse tipo de trabalho. Eu já apareci no prograrma da Ana Maria Braga, representando a arte santeira aqui do Piauí, tá com três anos isso, foi no período dos folguedos tava lá na Poticabana quando recebi o convite, o SEBRAE aceitou, PRODARTE apoiou. E foi muito bom também, ela tem 21 peças minhas, eu nunca sabia que ela tinha comprado uma peça minha. --- fala isso naturalmente, sem nem uma presunção--- O pessoal do PRODARTE, do SEBRAE sempre negociava as peças da gente e não dizia pra quem nem pra onde. Eles ficaram admirados porque sempre o artesão sabe quem é o colecionador deles, todos os estados passam para o artesão.
Mestre Luiz faz uma pequena crítica as entidades responsáveis por essa divuldação da arte, mas a faz sem resentimento, fala de forma conformada:
---- “Fulano de tal tem uma peça sua, fulano de tal tem uma peça sua, e ele quer mais uma peça sua”, e eles encomendavam uma peça sua, por exemplo minha, e passavam no valor a mais, no caso quem ganhava dinheiro era eles, apesar “ de eu” dar boa informação do PRODARTE e do SEBRAE, mas sempre a gente é colocado pra trás um pouco. Uma encomenda que eles cobram 10 mil reias, eles vão pagar mil, desse valor lá. Eu digo, é isso mesmo, porque também se não fosse eles a gente não estaria aqui.
Com uma paciência de Jó, paciência que só quem trabalha com as mãos tem, o Mestre vai explicando pra gente como ele faz suas peças:
---- Depois de moldar a peça, a gente lixa, encera, passa cera pra calçado pra dar outra tonalidade pra madeira. Prepara a anilina com álcool, na cor marrom nogueira, dá marrom claro, da escuro e dá preto, você vai escurecendo de acordo com a tonalidade que você quer, aí fica bonito, no caso aqui já ta no ponto de lixar, qualquer pessoa lixa. Uma moça passou “indagora”e disse “Mestre faça um pé pra mim que eu tenho que viajar amanhã”, eu disse tudo bem pode deixar, vá da uma voltinha que já já eu faço. Eu faço tudo quase sozinho, mas eu tenho quem lixe pra mim. Uma peça dessas ---mostra uma carranca de quase 50cm--- eu levo três dias, é rapidinho a gente faz.
Ele vai conversando de mansinho, soturnamente e começa a falar da sua infâcia na roça:
---- Meu pai brigava tanto quando eu deixava de “encoivará” na roça, pra ta cortando raíz, cortando madeira, enrolando. Ele brigava dizendo que eu ia ser preguiçoso demais --- se remexe na cadeira e da um sorriso de canto de boca. Ele já faleceu tem 2 anos, --- não parece triste ao dizer, apenas um fio de resignação passa por seus olhos velhos mas argutos--- morreu com 93, ele trabalhava cortando cana numa fazenda chamada São Joaquim, era do Comandante Ribamar, sogro do Lourival Parente, e ai na época há 20 anos atrás, foi loteado 13, 15, 20 hectares e eu comprei o lote que ele morrava e dei pra ele. Nunca saiu de lá, viveu e morreu lá na terra dele, criou a gente na terra dos outros, mas de 20 anos pra cá a terra era dele. Eu comprei e dei pra ele, os filhos dele mora tudo lá, meu sítio eu comprei separado, ele morreu mas tá la, ninguém vende, fica “praqueles” que vai ficando, só passando de geração pra geração, porque ninguém quer vender.
Por um momento nos parece que ele está ficando meio aborrecido com aquela conversa toda, ele se remexe na cadeira, dá uma boa olhada em todos e volta a falar normalmente:
--- Falo com voçês porque tem muito artesão que se recusa, que não conversa. Mas me recusar pra que?! Voçês é que vão falar bem da gente, que vão mostrar nosso trabalho. Qualquer coisa é só perguntar, “tamu” aqui pra isso mesmo. Podem vir aqui quando quiser.
Com essa percebemos que é nossa hora que ir embora, que o Mestre já esta cansado e quer sua paz de volta por entre suas ferramentas e utensílios que já são como uma extensão de seu corpo. Ele se despedi do mesmo jeito que nos recebeu, sem delongas e sem sorrisos escancarados.
Seu rosto sisudo e cansado, mas satisfeito, é a moldura do cenário de sua história e de muitas outras figuras que construiram sua vida junto com o Mercado Velho de Teresina, e que fizeram da sua vida o próprio Mercado.
A impressão que fica é de que faz parte daquele lugar, como uma figura mitológica ou uma planta que foi se moldando de acordo com as mudanças. Veio o vento, a chuva, a estiagem de nossas terras secas e cheias de mazelas e ele ainda sim, estava lá.
E sempre vai estar lá.
Ou que ele já veio daquele jeito, feito, pronto, velho, que já faz parte da configuração do ambiente de todo o Mercado Velho, que se constituem do mesmo material histórico, dramático e carregado de significado que lugares com esse possuem.
O Mestre estava lá naquele dia de sol. Provavelmente ainda estará lá, no seu canto, entre santos e pecadores.

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