sexta-feira, 6 de julho de 2012

Não estar


Aquela voz travada, jeito abafado de dizer, coisa de quem fala pelos cantos. Não porque deseje mal ou bem pras pessoas, foi a vida que tratou de deixer-lhe átono por muito tempo. Linguajar difícil, não erudito, porém sofrido, forte de ouvir para quem tem audição para suposta pureza. Revelava uma dura e triste realidade de um ex-presidiário, hoje morador de rua.

Há quase 30 anos, o Legislativo brasileiro promulgou a lei que regula a Execução Penal. Cronologicamente, período delicado na história do país: 1984 estava a um ano do dito final da ditadura militar. Embora a norma, a lei ordinária de nº 7210, trouxesse alguns benefícios para os presidiários, foi inspirada na Doutrina de Segurança Nacional - que, em linhas rasas, quase beirando à imprecisão, disciplina que "prende primeiro, pergunta depois".

Cinco anos depois dessa lei, nasceria o rapaz negro que contou um pouco de sua vida, sentado no chão da Praça Pedro II. A negritude. O ser negro. Impressiona a guetização e segregação simbólicas e reais ocorridas velada e explicitamente em nossa sociedade. Um "pardo" (auto-considerado afro-descendente), uma branca e um outro negro. Este último logo foi apelidado "Bob Marley" e tornou-se o canal de diálogo da noite. Era-nos permitido conversar. Mas o cara precisava de uma referência, um irmanado, possivelmente com receio de represálias ou, o que é pior, o desprezo que vira o rosto e continua bebendo cerveja. Foi o jeito dele de pedir licença e atenção. A invisibilidade social aparelha de várias estratégias os que querem contar com um olhar acolhedor d@ outr@.

Furto de bicicleta somado com ausência de defesa criminal e Casa de Custódia são igual a uma condenação triplamente qualificada. A valorização do patrimônio em detrimento da vida; a estruturação social que não oferece pleno acesso a qualquer tipo de justiça; e um local notoriamente conhecido como um dos mais massacrantes em termos de estabelecimentos prisionais do Piauí. Anestesia, embrutecimento, suplício: é o que lá se oferece.

E o pai de uma criança de sete anos, de Piripiri, conversava por dinheiro. Um artista inconsciente. Artista não por luxo, pompa ou vanglória, não pela imagem romantizada de contador de histórias, mas um artista. Que dramatizou a própria vida nas cores mais cruas com que poderia pintá-la: as cores da pele.

Arrecadou algum dinheiro; pouco, mas era o que nos permitíamos. Falou de juntar grana pra comprar passagem pra casa. Foi perguntado porque não procurou o Serviço Social da Rodoviária. Meneio de cabeça e alteração da voz. Já o fizera, com resultado negativo. Acreditou que poderia contar com as instituições, muit@s que passam pelas prisões saem com menos confiança ainda: nunca foram amparad@s antes, por que seriam depois das grades?

Levantou-se. Partiu. É possível que tenha se invisibilizado novamente. Não foi o primeiro que nos abordou. Nem será o último, parece. São vidas que passam e ficam minimamente na nossa memória.


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