quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Clarice

Um dia desses, desses em que a gente repousa a cabeça sobre o travesseiro, esquece do corpo e o pensamento voa, apareceu diante dos meus olhos fechados, como um clarão, o rosto da dona das mais íntimas palavras: Clarice. Olhou para mim com alguns versos na boca. Não perguntou qual era o livro que eu mais gostava, ou se eu já tinha comprado todos os seus livros, ou se eu estava bem ou fingia muito bem. Nem perguntou se eu queria ouvi-lá e já foi logo dizendo um refrão que não era seu nem meu. Talvez eu até já tenha ouvido uma ou duas pessoas cantando-o. Ouvi as palavras silabadas.

- “Os erros de amor já nascem com perdão”

Depois, eu lembro como se fosse hoje, que essas oito palavras entraram por um ouvido e saíram pelo outro. Eu até poderia acreditar, aceitar o conselho e até escrever um poema. Mas não deu. Agiu como uma comida que não desce e fica dançando garganta abaixo.

Me surpreendeu muito Clarice ter aparecido assim do nada, sem avisar ou sem eu estar tentando lembrar algum dos seus adoráveis poemas que eu acabara de ler.E ela estava com um semblante perturbado, com cara de quem estava com o pensamento na boca e o coração na mão.

Seria mais fácil se Clarice, uma mulher tão clara de si, tão cruel com os versos, exibida em seu âmago, não tivesse dito plurais doloridos como esses. Eu bem sei que amores nascem de erros. Já não sei se se perdoam até mesmo com erros ainda não nascidos.

Clarice ainda ficou mais um pouquinho diante da pouca visão dos olho fechados. Recitou:

- Se não souber perdoar, não perdoe. Não machuque também. O tempo existe para transformar feridas em cicatrizes. Se quiser ir, vá. Corra, pule, voe por onde quiser. Leve as marcas da memória, as partes da história e até o adeus. Ir é sempre uma viagem mais longa, que, às vezes, não deixa chances de voltar. Se restar sentimento, lave-o com as poucas lágrimas que hão de descer para acalmar a alma. E como a vida erra até pra ser perfeita, quem sabe não chove, disfarça o choro e ainda apague as pegadas que te fizeram andar. Pronto, depois não haverá sinal de inverno no coração.
Só tive coragem de recitar seus próprios versos:"E como se o mundo estivesse à minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera."

Clarice fechou a boca e eu acordei sem saber se tinha vivido ou morrido.

(Rosseane Ribeiro)

2 comentários:

  1. Que lindo texto Rosseane. Clarice é uma dessas raridades que nascem de tempo em tempo. Parabéns.

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  2. Clarice é uma das poucas maravilhas do mundo. Caiu no gosto popular e muita gente reconheceu-a e muita gente banalizou. Mas escritora como a Clarice, são poucas!

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