sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Brinde macabro: o plano, o contra-plano e a alma da menina


Não havia outra sensação rodeando o pequeno ambiente da mesa, cartas e copos naquele momento. Previa, a qualquer instante, uma batalha  homérica entre o céu e o inferno. Os olhares se cruzavam. Duque também o mirava parecia saber exatamente o porquê desta reunião. Jamais conjecturei
que o dia do chá de coca e gengibre com meu alter ego fosse transformado num enebriante, confuso e caótico encontro. Como sempre, Satan demonstrava confiança, com o riso sarcástico no rosto. Saberia ele o final deste acontecimento? O silêncio é quebrado, enquanto as cartas são distribuídas.

- Então Metatron, hoje foi o dia escolhido por vocês, anjos, para a reconquista dos tempos de paz? Como tudo foi arquitetado? Deus já está ciente de todas as coisas ou vocês realmente creem no mito da onipresença?

- Não possuo motivo nenhum para falar sobre o que nós planejamos, mas se tanto te preza saber destas coisas, também não me oponho. Sabes muito bem das regras que são impostas para os seres e suas dimensões. O encontro de dois humanos vivos no inferno foi sim nossa porta de entrada e por isso mesmo aproveitamos esse dia. Engana-se sobre o objetivo do plano. Não viemos reconquistar nada, nem ninguém. Queremos acabar de uma vez com esta tripartição, e seria muito interessante não haver resistências. Sobre Deus, você o conhece muito bem, já esteve ao nosso lado por muito tempo, então não há o que dizer.

- Realmente pareço conhecer mais Deus que vocês. E pelo visto, nada mudou naquele céu paradisíaco e perfeito. Mas não me diminua tanto. Eu também imaginei que tantos alados assim no inferno não viriam somente colher boas almas para salvação. Não me ache tão tolo. Penso somente que isso
não é determinação do seu senhor. E tenho certeza que você não conseguirá este feito.

- Não me retirarei de um possível combate.

- Eu sei disso, e é isso que espero.

O tom subira de uma hora pra outra tornando alarmante e tensa a situação. Nada poderia ser feito então? Era esse o objetivo dos céus? Seria o fim. A garganta rasgava traços de humanidade nascidos de meu medo. Medo, sensações. O que era aquilo que rogava por retorno? Para salvação em não cair nestes devaneios, minha fala jogou-se na zona de conflito.

- Caro Metatron, embora não saiba exatamente da força e eficácia do seu plano, teria você feito a leitura mais correta e precisa para vencer esse embate? Não julgas importante a existência de teus irmãos para jogá-los assim no ardor da morte?

- Nobre pensador Sócrates, desta vez você me subestima. Evidente que estas preocupações foram tomadas. Não haverá embates. Te preocupas com a vida das tuas pessoas? A Terra não tem mais sentido. Não com a existência humana. Se não há razão da vida de carne existir por que este inóspito lugar deveria ser poupado? Para que o círculo nunca quebre? Para algo ter sentido? Não. O desenrolar dos tempos tem sua continuidade. E para um grupo de seres que não adquiriu a capacidade de evoluir, não haverá piedade.

- Mas vejo contradições nesse intento. De certo que há muito tempo não ressoa em mim compaixão ou sentimento preciso. O embate, me parece inevitável, mas como a existência de uma raça traz inquietações desproporcionais para o paraíso e torna-se motivação para destacar-se numa missão onde perdas ocorrerão e todo um equilíbrio pode ser perdido? Não é este o motivo então. Não há como esta ser a causa para que esse desenrolar nos trouxesse até aqui.

- Faz este prognóstico a partir do contingente que trouxe comigo? Isso posso entender, mas não crê no que digo, quando falo que não haverá embate?

- Sim, o que você diz é verossímil e é exatamente isso que me inquieta. Porque não havendo esse embate, penso que outros acordos foram feitos antes deste momento.

- Novamente não falha sua perspicácia nobre pensador. Então você já conjectura o real sentido da chegada de Metatron e o Duque de Copas aqui.

Um silêncio se postou naquela mesa. Duque, ao ser mencionado, guardou um sorriso no canto da boca. Tudo começava a ter obviedade, todas as chegadas, tudo o que foi falado, todo processo no qual me inseri. Era incrível e extremamente sutil a nobreza e o sarcasmo de alguns atos de Satan e Metatron. Embora sanguinários. Mas não cabia a mim juízo ou coisa parecida. Trabalhava na perspectiva lógica. O deleite em juntar todas as peças fora interrompido pela fala de Duque.

- O estratagema então está montado e cá nos encontramos como peças de um tabuleiro de xadrez. É apenas assim que me tomas Satan?

- Pelo contrário caro Duque. Não vês a importância desse dia e de sua presença aqui? Foi exatamente por isso que você lutou. Foi tudo isso que você almejou.

- Não há como corroborar em totalidade com o que diz.  Está sim em curso tudo aquilo que objetivei, mas as nuances programadas por você não me asseguram um desfecho de deleites.

- O que eu poderia fazer Duque? Eu praticamente não me movi. Tudo fez parte dos próprios passos de cada um aqui nesta mesa. Apenas algumas conexões foram colocadas para que pudêssemos saborear bem esta pequena conferência.

Satan bradava suas palavras ao Duque enquanto enchia as taças. Era chegado o instante.

- Brindemos então senhores, vitoriosos ou não!

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