terça-feira, 24 de novembro de 2015

Desviver


Novembro; o ano; a existência
o planeta dentro de mim ...
poderia num sonho de quimera,
simplesmente sumir?
Acabar, obliterar-se de dentro pra fora?
Exaurir a última queima de oxigênio,
findar-se sem deixar vestígio?
Como se eu nem tivesse passado,
história, lembrança, amores
Novembro, tu me dói a alma;
pela marca do tiro certeiro,
do meu próprio punho oscilante
Para quê dezembro? Por que insistir?
O sentimento comum de recomeço,
de um novo ciclo ao fim do ano,
não surgirá, não terá efeito,
não iniciará nada, nem tudo,
Acabe aqui, em silêncio,
antes mesmo de alem do fim,
antes da minha vontade de desviver;
Apague rapidamente, para não ter riscos,
de nenhum rabisco meu, em memória;
Até que pare o pêndulo,
o tempo descanse,
e eu possa perecer,
sem lastro, sem rastro, nem rosto
encerrando o sufoco, o tormento,
sem arestas, lapidações e medos
deixa-me mais cedo,
ser um vasto esquecimento

André Café

sábado, 21 de novembro de 2015

Acalentado



De agonia me afogo em poesias
Ultrajantes e ecxtasiantes
De agonia transpiro versos
Surreais e incertos
De agonia vomito palavras
Nocivas e decididas
De agonia derramo letras
Azuis e Aleatórias
Ao vento do oceano
Ao som das flautas de ohm

(Victor Barbosa)

Teu sabor




Teu gosto em minha boca
Me perco nestas pernas
Após cada segundo em teus lábios
Entre tua vagina e teu gozo
Tempo tão efêmero quanto eterno
Enlouquece meu inferno
Com a lembrança de tê-la em minha boca
É quase um outro sexo
Nada mais me sacia
Nem tua buceta com meu pau
Tão pouco, tua boca em minha boca
Nada mais me sacia, se não ela
Macia, linda, encharcada e deliciosa em minha boca
Deixando aquela memória residual antes mesmo de gozar

Quero mais...

(Victor Barbosa)

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Mais uma primavera


Da janela, o carro lento,
o passo firme, tardio vento,
a pressa da presa, a chuva
ora dádiva, ora escárnio
lavando um a um, atrasos
e apressados;
as ruas e tudo o que passava;
o tempo melodiava,
para as pessoas olharem pra si
e para o alto; para os lados
e para o fim; para que se
parasse tudo e que tudo fosse
brincadeira de criança
em pleno fim de tarde

Mas arde, a cabeça e paciência,
o horário e a essência;
bate ponto, lucra rico,
paga conta, pobre fico;
não por aqui, nem acolá,
tampouco ali; lá nem pensar
das culpas que não são nossas
a rota é guarda chuva
e mergulho nas vias inundadas,
para mais um dia de risco
em prédios de janelas fechadas

Cá estou, a ver o fluxo;
do meu mundo sozinho,
observando o tempo
passando por todas as vontades
e possibilidades de mudanças
quiçá, oxalá, tenho esperança
não há tempo pra mais espera;
que da janela do meu abrigo
só floresçam primaveras

André Café

Folclórica

Imagem Original

um conto
esquecido
num folk
a estrofe:
estopim

então você
sem um porquê
jogou no mar
o livro antigo
que te dei
no Natal
sobre o Sal
e um amigo

o tempo secou
os seus pés
e os meus pés
Hefesto desejou

no espaço
da sua varanda
silenciou o som
de Sírinx, sim
talvez se chame Pã

e o suéter cinza
que fiz
com lã de amor
você doou
pro seu avô
em maio

mas os gestos
olhares inquietos
no jeito do amor
o beijo partido
no fim do amar
sua arma secreta
segredo ainda
guardado

no fundo do mar
um manuscrito
esquecido
um livro
você jogou
no fundo do mar
o fim do amor

o tempo secou
os seus pés
e os meus pés
Hefesto desejou

Laís Grass Possebon

A Taça


Derramam-se os vinhos
Fragmenta-se a poeira
Modelo Inacabado

Desconstruído
Faltam-se Palavras
Vasculha-se o Proibido
Eis um Achado

Em meio de copos perdidos
A cintilante Taça
Construída de Cacos Vazios
Moldes imperfeitos
Reflexo da alma de um poeta vazio.

Alciomar Neto

O beijo de Nimue


 Declarou-se árido e abandonou o lago alfa. Atravessou dois condados com sangue nos olhos. Matou o estado e chegou a Montana. Desconhecia os folclores trazidos pelos ébrios imigrantes. Suou. Sujeitou-se aos costumes. Casou-se com uma antropóloga e se fez objeto. Os anos se passaram e os traços marcaram sua face. Deixou um manuscrito ao lado da cama. Retornou ao lago alfa. O lago mostrou-se ômega. Entregou-se água. Despertou em outro universo. Foi beijado por Nimue.

Laís Grass Possebon

Objetivo


 Pragmático insistente
Num caráter repressivo
Pensamento incisivo
Massificador dá gente

Não passa
Lama reluzente...
Mentes de âmagos Vazios...

Alciomar Neto

Ossos do Ócio


 Antropomorfo em busca de sentido
A pé... e sempre indo
Jornada sem hora exata
O EU, o prólogo do nada

Ausência de Passado
O que se foi... presente

Teoria inventiva dum futuro ausente
Inexistência de realidade existente

... acabado

Não há virtude que se procura
Em Retóricas Planas
Simplesmente Ossos
De um mero ócio...

Alciomar Neto

Se sonho, pesadelo.


Enquanto ele dormia, repensava sobre os dias que deixei de registrar os des(amores) da vida. Regava a flor, sem precisar de sua mão. Para mim, dia. Mas ele dormia profundamente e não conseguia me ouvir, tampouco me enxergar. Eu dançava e, por vezes, falava no ar, mas o momento era como se não houvesse som, como se minha voz fosse muda e minha expressão soasse como desespero.  Ele não me via, mas a tempestade já molhava meu corpo todo. Meus olhos, o desafino da vida, ele jamais veria. Surrada, desalinhada, buscando prazeres que a vida não tem. Meio séria, desentendida, semblante vazio. Os encontros já não acontecem, eu não disfarço, não finjo, não minto orgasmos, mas quando acorda só vê a calmaria, me apalpa dizendo carinho e a concretude do corpo o faz pensar que ainda estou aí. Então sorri num desentendido “bom dia, amor!”. E eu o aceito...

Tassi

Para nos olharmos


Porque em riste, para você que anda ao meu lado.
Triste, somos todos algo que não sonhamos ser
E a fera enfurecida pela tela de led, pelo lead diluído
Ataquem-se, ante e distante ao berço do saber

De empatia, apenas a tendência, mas não do todo em si
enquanto isso a máquina não para, o lucro determina
seria eu só, ou da humanidade, destino causal?
uma pausa no pensar; o contemplar de quem contamina

Não somos nós nossos alvos,
há de existir paz com os mesmos objetivos
As dores não serão seladas com silêncios
no fulgor das barricadas que se levantarão
saberemos o que queremos, quem somos e sonhamos
e nada que fantasie nossos olhares e vontades
será capaz de parar a torrente de radicalidade

André Café

Veleiros


As palavras que ensurdecem;
aquelas em que minha voz, muda
rotas e voltas de amores alheios
conselhos servidos para o mundo a fora

E agora espelho? É por refletir o inverso
que o verso é sina? Assassina vontade
de silêncio ou de piedade sincera;
quimera, pois já se foi mais um deleite

Vida que segue, das palavras que me flutuam;
sendo paz e força para quem procura;
mas nunca será a cura,
que afagará os veleiros dentro de mim

André Café

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

De madrugada, a gente questiona 6


Passo a passo caminhar;
neste rumos que torturam,
não é querer pesar por pesar,
mas melancólicos são os tracejos da vida

Curam-se as feridas,
quando não se sente mais dor alguma
fé? talvez um apego; mais um ou finalmente;
o lado do céu iluminado recai em ilusões

O tempo apregoa a disritmia,
cedo ou só, tarde quente, noite intrusa
a madrugada pede fala, os olhos querem silêncio:
o corpo cede, a sede obsessiva da mente

Risco; rasgando o sentido de sentir;
nos versos surgidos, a fome engana
se espalha, se esconde, parece alívio
dum ser 'secante', tangente ao desfibrilante

André Café

Amo, mas amargo-me


Como diriam versos ao acaso,
de alguma música que fala de amor;
eu queria te dizer o que cantam,
eu queria poder fugir desse silêncio

Um amor assim; como despedida,
pelas poucas crenças que me restam
e que certamente será: 'o que teria sido'
para não alcançar destino frustrante

Não falo de merecimento ou coisa parecida,
não se medem relações, tampouco assim,
as vontades surgem e clamam existência
enquanto o coração se abriga, batendo cada vez mais surdo

Eu penso que a amo: pelos corredores dos lugares que vimos,
em cada brinde, em cada gole, em cada momento de perder o fôlego
mas o corpo precisa do ar de realidade; platonicamente se repete
sou eu ou são todas as cores? Cada dia é 'passo', para que não se viva mais ardores

Amo, mas amargo-me

André Café

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Entre espaços


Um misto de mundos
afetando os caminhos;
para onde estou andando,
não me contam os delírios

Num rumo de normas,
achando ser louco;
no traço da loucura,
içado pelo chão

Quanto tempo se leva
para revelar o que relevo?
Entre a materialidade escancarada
e o íntimo do espaço em mim

Não sou eu o só, estamos;
gerações, nações e universos
que não cabem no traço do verso
e não medem os ardores indevidos

André Café

terça-feira, 3 de novembro de 2015

O conto do Antonio


Me contou seu Oliveira,
uma história antiga,
daquelas que vira cantiga
de se cantar nas feiras

O caso foi por ele vivido,
e que começa bem assim:
Maranhão, no interior Mearim
foi o local do acontecido

Sua filha, Ana Maria
tava num mal que só
sofria de uma doença
que não importava a crença
era de sentir dó

O Antonio preocupado,
pois remédio não funcionava,
sua cria nem se mexia
de tanta dor que sentia
e cada vez mais piorava

Deusimar, mãe da menina
se agarrava na oração
mas também foi procurar
dentro do saber popular
alguma solução

Seu Antonio, de boi e reisado,
foi sem problema escutar
o que um Preto Velho dizia
e como numa profecia
lhe disse o que devia encontrar

'Essa doença agourenta,
tem um remédio natural
vá caçar uma raposa no mato
abra a bicha, tire os fato
e pegue o fígado do animal'

'Bote por riba das telhas
deixe ficar sequinho
amasse, pise, no moedor
o que ficou passe no coedor
até criar um pozinho'

O Antonio voltou depressa
mas raposa não marca reunião
o jeito era esperar
pra não deixar escapar
o bicho pelos grotão

A Deusa, na pausa das rezas
já cuidava das panelas em brasa
ferveu café, fez beiju no azeite
deu pro Antonio um copo de leite,
e continuou no fazer da casa

O homem se passou pra tapioca
comeu, repetiu que suou
Deusimar ficou descrente
'esse aí, pega nem gente'
foi quando todo mundo escutou

A gritaria vinha do galinheiro
E o Antonio já saiu correndo
pegou do sogro, a espingarda
chegou ofegante na galinhada
pra ver o que tava acontecendo

Pois num era uma raposa naquele instante?
A galinha piava e bicava
mas ela comia sem parar
um, dois, três pintinho, sem piscar
por isso nem viu o que lhe apontava

Ouvi-se só o estouro
mas o tiro não foi certeiro
pegou bem na bacia,
mesmo assim ela fugia
pro meio do salseiro

E seu Antonio, na pressa de resolver,
gritou pro cunhado na agonia
"José, acode aqui que ela tá fugindo!"
e lá foi mais um tinindo
pra pegar o bicho de dia

Raposa caçada, doença vai passar!
pegaram a carcaça no chão
fizeram como o Preto Velho ensinou
tirou o fígado e nas telhas pendurou
só não contava com o gavião

Não deu nem um minuto de Sol,
lá se foi o fígado voando
Antonio correu, mas não alcançou
pra cima dum coqueiro o bicho parou,
e se apressou quando viu Antonio mirando.

O fígado foi para as crias,
mas Ana Maria ficou bem
coqueluche era a doença da sina
que se medicou e tomou vacina
pra alívio dos pais e dos vizinhos também

Mas fica pra história o conto do Antonio,
que mostra mãe e pai com preocupação,
tem que ser rezadeira, caçador e açougueiro
percorrer por várias fé do mundo inteiro
pra virar rima nordestina que fala de tradição.


André Café

(Poema feito a partir das histórias de antigamente que seu avô Antonio Oliveira e avó Deusimar Laurinda viveram)

Orgânica


Mãos dadas;
olhos firmes
pra frente,
pro meio,
avante

Ombros ladeados,
vozes uníssonas.
diversificado,
horizontalizado,
avante

Materialidade,
coesão e unidade,
tática, prática e liberdade,
o futuro não é distante,
avante

O por vir é logo ali,
pelos frontes que resistem,
comunidades que insurgem,
federações que se constroem,
ações e democracia diretas,
passos fundamentados na ética
a revolução está adiante,
avante

André Café

Viver


Alguns espelhos refletiam nossa
eterna mocidade e outros apenas
acenavam com punhos de vidro.

Algumas portas se fechavam de
forma abrupta e outras somente
se abriam em um duro ranger.

Sua voz se infiltrava em meus
ouvidos como uma sinfonia de
de inverno cinzento e infinito.

Meus pés deslizavam sobre os
seus lábios cálidos de queixas
e tremiam até o seu umbigo.

Sua face mórbida se encaixava
com exatidão entre os meus seios
onde dormia depois do amanhecer.

A aurora trazia o horizonte para
dentro da alcova e também um
caixote para o nosso segredo:

Morrer.

Laìs Ha

Nelson Mandela

Imagem: www.nytimes.com

O líder das revoluções.
O difusor do antiapartheid.
O mensageiro da liberdade.
O cavaleiro da paz.
O mestre que lutou pelos bestializados.
Em prol de uma nação, foi condenado e exilado.
No vasto horizonte o brado de igualdade.

Dhiogo J. Caetano

Quando Quimera fugiu de Anatólia


Ao caminhar sobre velhas calçadas de lajota de uma florida rua do meu bairro, sem me preocupar com os vizinhos que retornam cansados do trabalho e com as crianças que brincam sob árvores, voo até o meu lugar mais bonito e me encontro entre pessoas azuis. Com roxos chapéus de magos, solitários arqueiros pedem-me poemas de amor sobre uma terra distante. Declamo sem pestanejar. O azul se torna mais anil. Seus arcos se transformam em violinos que acompanham algum canto élfico. Sou assim desde pequena: prefiro andar pelo teto e desbravar outros planetas a me prender a toda essa normalidade nauseabunda. Nas rodas de ciranda, eu era a menina que se dizia viking. Na roda de amigos, eu era a jovem que se intitulava Joana d’Arc. Na roda da vida, eu rodo ao contrário. Talvez por isso tenho de dormir sob um apanhador de sonhos. Quem sabe o motivo de minhas buscas esteja aí: nas quimeras. Para mim, o propósito sempre foi experimentar. Budismo. Xamanismo. Anarquismo. Comunismo. Faltam ismos neste mundo. Voo até encontrar.

Laís Grass Possebon

De.pois


Ele exibia expressões de arrependimento
de uma vida advinda de seu bovarismo
plenamente cego por seu ego frágil e só.
Apesar da exterioridade diminuta, que
dissimulava o arquétipo do século, ele
desconhecia a maioria dos livros e dos
filmes que valiam a pena. Seus medos
insanos – penosos e infantis – afirmavam
sua fragilidade de menino em busca de
autoafirmação. Deixo minha confissão:

Eu também fui assim quando tinha aqueles
dezenove anos, boy. Hoje sou outra. Crua.
Sou a mulher que nasci para ser, e jamais
abrirei mão de minha personalidade agreste.
Não precisa mais treinar frases pacóvias
em frente ao seu espelho de menino casto
nem chorar quando desabar no seu próprio
vazio. A vida flameja sob o firmamento e
o tempo enxuga seu líquido férvido com
as escolhas enxutas de cada indivíduo.

Preferências que por diversas vezes se
assolam em um destino frívolo de uma
limitada existência: sequer em palavras
remanescem metafóricos sentidos afoitos.
Nas frases cotidianas, a língua portuguesa
resplandece em meu esmalte vinho clássico,
declarando aquela sua mania cretina de não
isolar o vocativo com uma vital vírgula, boy.
Meus olhos míopes e astigmáticos – isentos
de misericórdia – proferem: je suis desolée.

Só para você ver: a questão – tão abrupta
proclama seu martírio infuso no melodrama
da coluna social de uma choldra jornalística.
Uma televisão multicolorida não afaga o
tormento oriundo de suas novelas mentais
e de seus hábitos inteiramente falidos.
Talvez algum versículo grifado em suas
pálpebras obscuras não permita que seus
intentos se realizem de modo vertiginoso
ou que cortem aqueles forçosos efeitos.

Sem epílogo remanescente:
Há o som de um trompete noturno.
Audível.
Silenciosamente musical.
Sensível.
Um espaço para partituras.
Repare bem em tudo o que não foi
escrito.

Laìs Ha

Irmã Dulce

Imagem: www.sigivilares.com.br

A mãe dos necessitados.
A cuidadora dos aflitos.
Um anjo encarnado.
Uma mulher guiada pela fé.
Movida pela solidariedade.
Instruída pelo amor.

Dhiogo J. Caetano

Quando me vi entre Oneiros

Gonçalo Franco

Quando já não entrava vento por aquela parte entreaberta da vidraça da janela, quando não mais se ouvia os garotos, que bebiam conhaque com café do outro lado da rua, pedirem beijos às garotas que saíam da escola de balé que ficava em um antigo prédio cor de pêssego na esquina, quando já nem se via prédios velhos pelo bairro e muito menos bailarinas, foi que percebi seu sumiço de meu quarto. A janela ainda estava entreaberta e, na calçada do outro lado da rua, havia uma garrafa de conhaque vazia. Mulheres caminhavam apressadas, arrastando seus filhos pelos braços, enquanto homens subitamente atacavam os táxis que trafegavam acelerados. Meus livros, que já se mostravam amarelados, diziam dez anos. Talvez quinze. Acho que sumiços nos causam isto: a perda da contagem do tempo. Apenas esperamos. Sentamos. Fingimos ler. Fingimos ligar a tevê. Fingimos cuidar o trajeto dos ponteiros do relógio. Fingimos respirar. O tempo, por vingança, acelera quando fingimos não sentir, e profundamente os sentidos se afloram até nos darmos conta de que sobreviver não é o mesmo que viver. E a maioria apenas sobrevive. Lembro-me de que em uma noite qualquer você me disse para deixar minha mente vazia, pois assim não ficaria rolando durante horas pela cama e conseguiria dormir mais rápido. Talvez por isso tenho pensado que, se todos esvaziassem suas mentes e somente acumulassem memórias diárias, as coisas funcionariam de modo mais fácil. Quem sabe desse jeito, dissimulando e esquecendo, sentiríamos apenas uma vez na vida, e assim seria mais simples para viver: hoje não me recordaria daquilo que ontem senti e amanhã sentiria algo novo que apagaria o que foi sentido hoje. É engraçado: tentamos fugir de tudo o que nos torna vivos por medo de que isso venha a nos matar. Por exemplo: hoje, após uma década sentada em um canapé sem me dar conta de seu sumiço, resolvi devanear para tentar esquecer o que perdi quando percebi que o perdi, e assim continuo perdendo – perdendo-me. É que o caminho das fugas sempre me pareceu mais prático. Permaneço fugindo de mim em mim. Perco-me em mim.

Laís Grass Possebon

O Sabor da Liberdade


Uma sensação obscura invade-me.
Entre celas, a opressão da liberdade.
No olhar o grito de socorro dos encarcerados.
Em meio a um ambiente fétido, a esperança ligeiramente surge.
Os indivíduos ali confinados tristemente narram a sua realidade.
Jovens, idosos, mulheres sentem na pele a "justiça" humana.
Os agentes carcerários esboçam uma expressão de superioridade.
O Judiciário decreta e homologa a sentença.
Estão pagando o erro, com a privação da liberdade. Essa é a solução?
Em uma visita para coleta de material biológico, pude sentir na pele os efeitos da prisão.
Um jovem olhou nos meus olhos e disse: "Que bom que você veio, não queria sentir o gosto da liberdade".
Em uma cela ao lado, outro jovem meneou com a cabeça, dizendo: "Quando saímos, somos humilhados. As algemas e a própria viatura policial nos crucifica como bandidos, marginais, monstros".
"Ninguém vê a possibilidade da mudança. Todos querem julgar!".
Meu coração em prantos instigava-me a perguntar a mim mesmo: Como poderia ajudar, o que fazer?
Em uma pequena cela, um grupo de indivíduos, que por infringir as leis humanas foram exilados do contexto social.
Mas quem são os condenados? Quem são os condenadores?
A solução é o aprisionamento, ou a reeducação?
É chegada a hora da revisão de todas as estruturas instituídas para a vigente ordem da vida social humana.
O primitivismo deve ser banido da nossa perspectiva intelectual e filosófica.
Progredimos, mas arrastamos a origem instintiva até os dias atuais.
Muitas das nossas atitudes são difundidas de forma irracional.
O materialismo de conluio com o egoísmo fecunda o autoritarismo que dita as regras humanas.
Existe um universo desconhecido à nossa volta, não podemos morrer nas profundezas da incompreensão de uma razão tola.

Dhiogo J. Caetano

Apoema

Derek Bridges

No meu pequeno pedaço de terra
que outrora foi desmedido e verde
ainda permanecem vivas as chagas
produzidas pelos coléricos do norte.
Neste corpo juvenil e neste espírito
ancião, expressivos, vigorosos, há
os traços dos pecados ditos sagrados
feitos pelos santos do eurocentrismo.
O meu sangue escarlate, os milênios
destruídos, as crianças recém nascidas,
as mulheres violentadas e os dízimos já
pagos ao sacro euronarciso vazam de
meus vasos nativos, humanos e divinos.
No meu peito aborígene, na minha face
terráquea, na minha alma cósmica, sem
divisão de vidas, eclodem sentimentos
inefáveis que cicatrizarão as feridas
ainda abertas neste pequeno pedaço de
terra que outrora foi desmedido e verde.

Laís Grass Possebon

© Andrea Marchetti


perdida nesse
caos
nós
o avesso desse
céu
seu
meu pecado nu
lençol
sol
perdido nesse
caos
nós
dois extremos e


Laìs Ha

Luz ao frodo


teus dedos
selados
nos meus

teus lábios
sanguíneos
nos meus

teus selos
sinetes
nos meus

teus pés
sambando
nos meus

teu sorriso
sereno
no meu

teu corpo
suado
no meu

teu porto
seguro
no meu

teu afeto
silêncio
no meu

meu apego
segredo
no teu

nosso amor
sufrágio
meu e teu

Laìs Ha

O Corpo da Minha Alma

Azhar Latif

A arte me faz sobreviver em meio aos fluxos da dor.
Nas entrelinhas da vida o desejo da transmutação.
A movimentação do teatro preenche-me de sinergia.
As poesias narradas alimentam a minha alma.
Os versos proclamados me despertam diante do meu inverso.
As performances promovem o equilibro do meu ser.
Tudo inspira o nada que conspira em mim.
Diante da lente de uma câmera, uma criatura que busca transver as realidades.
A arte é o codinome do corpo que coabita a minha alma.

Dhiogo J. Caetano

O inefável universo dos adoradores de chá


Havia resquícios de sentimentos dentro de seus livros. Havia resíduos de amores no interior de sua gaveta de meias. Sobejavam partículas de macróbias confusões sentimentais pelos corredores de sua casa. Ao lado de cinco pequenos vasos de margaridas, que estavam sobrepostos em uma estante de madeira de carvalho, existia um antigo espelho oval, no qual podia se ver refletida em uma remota imagem cândida. Silenciosamente lívida abriu suas portas para que seu Anjo-amor adentrasse musicalmente. Ele entrou em seu lar e caminhou sem pressa pelos cômodos, apagando os fragmentos de velhas consternações ignóbeis. De modo inefável, sem prescrições galênicas, ele preparou um chá de canela para que ambos pudessem absorver as doçuras do fado. Após navegarem pela magia líquida do chá, trocaram pacíficas palavras de devoção e recolheram-se à alcova. Durante o sono, sonharam juntos e acordaram para dentro. Reconheceram-se no interior de cada um. Nunca mais deixaram de sonhar.

Laís Grass Possebon

Cruzeiro das almas perdidas


O gondoleiro do tempo já passara,
num deslize suave e lento,
sequestrou quem podia,
abarrotando a embarcação do tormento

E com mesma suavidade, desaparece,
no esquecimento das pessoas, padece ...

Para onde então seguir?
Em qual norte se flutua?
Qual o caminho do por vir?
Em qual sentir não se amua?

O vai e vem das horas
pelos séculos me transportam;
de outrora, nem resquício
em suplício, inexistimos

O despertar das pequenas chamas,
que velam por outro destino, iluminam,
transmutam a sorte fadada,
para as almas que vagueiam sem direção

Pois quando será a hora,
das luzes guias de outros caminhos
para aqueles que em carne viva
seguem tortos, perdidos, sozinhos?

André Café