Escritor, cineasta e crítico de cinema do jornal O Dia. E sim, ainda curtindo o caos - seja lá o que isso for.
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Um mestre, um discípulo
Aos 45 anos, esse nova-iorquino que atende pelo nome J. J. Abrams, na verdade Jeffrey Jacob Abrams, alcançou um lugar confortável na indústria midiática estadunidense. Embora não possa ser considerado um realizador prolífico (acredite, isso é até bom), seus produtos audiovisuais, tanto para a televisão quanto para o cinema, têm gerado ótimas receitas, além de caído nas graças da crítica. Da noite para o dia, viu-se nascer para o mundo das referências geeks com a série de TV Lost, criada por ele, Jeffrey Lieber e Damon Lindelof. Filho de um produtor televisivo, parecia ter seguido bem os passos do pai. Toda geração tem a obrigação de aprimorar, ou refinar, a anterior. J. J. sofisticou a equação ao abraçar o desafio de entreter o público sem subestimá-lo. Fora Lost, foi o responsável por revelar Jennifer Garner em outra série, Alias, também dele, e mostrar que Keri Russell (a babá de Querida, Estiquei o Bebê) havia crescido em Felicity, dele junto com Matt Reeves.
Esses três créditos o possibilitaram estrear como diretor de cinema com o pé direito. Se Missão: Impossível III passa longe de ser um clássico contemporâneo do gênero, ao menos é o filme mais caro comandado por um estreante. Antes disso, é com surpresa encontrar um certo Jeffrey Abrams por trás dos roteiros de Uma Segunda Chance, 1991, com Harrison Ford, Eternamente Jovem, aquele romance açucarado de 1992 com Mel Gibson, e, pasme, Armageddon, o evento de Michael Bay em 1998. Como costuma dizer meu pai, ninguém aguenta uma CPI. Na época dos remakes, reboots, sequências e prequências, Star Trek, dois anos atrás, solidificou J. J. como o cara certo para não estragar uma boa ideia. Mesmo que ela seja requentada. É justamente esse o sentimento mais forte depois de conferir o divertidíssimo Super 8, ficção bebida nas produções do fim dos anos 70 e começo dos 80, sobretudo as realizadas ou capitaneadas por Steven Spielberg. Não por acaso, ele é o produtor desta singela homenagem.
Sendo sua primeira investida com uma premissa originalmente sua, J. J. Abrams nos joga no meio de uma cidadezinha industrial de Ohio, EUA, para acompanharmos um grupo de garotos pré-púberes rodando um filme de zumbis com uma câmera super-8. Durante a gravação de uma cena noturna, testemunham a terrível colisão de um carro com um trem militar. Uma criatura escapa, dando início a eventos inacreditáveis, mexendo com o cotidiano da pacata cidade. Qualquer cinéfilo com mais de 25 anos percebe de cara as influências de Contatos Imediatos do Terceiro Grau e ET – O Extraterrestre, ambos dirigidos por Spielberg, a série Além da Imaginação, fora os pôsteres no quarto do protagonista:Terremoto, Guerra nas Estrelas, Zombie – O Despertar dos Mortos e Halloween. J. J. lida muito bem com todas essas e outras referências, como Os Goonies (no personagem Cary), dirigido por Richard Donner, mas produzido pelo mestre, ao menos neste caso, do diretor.
Como um bom discípulo, segue à risca as lições tomadas, nada mais sintomático na era do medo do novo. Aqui e ali, deixa rastros de sua própria personalidade, como os frequentes feixes de luz parasita – chamados de flares por lá. Contudo, a tentação de usar travelling e dolly zoom, característicos das produções spielberguianas citadas, parece sempre falar mais alto. Obviamente, não poderiam faltar os conflitos entre pais e filhos. Em Super 8, temos dois pares do tipo para serem dramaturgicamente resolvidos, como se um não fosse o bastante. Nesse sentido, J. J. Abrams ganha ponto por nunca esquecer os dramas humanos de sua história. As coisas acontecem ao redor dos personagens, não o contrário, tornando plenamente possível o envolvimento emocional do espectador. Coisas como dois amigos apaixonados pela mesma menina (Elle Fanning, talentosa irmã de Dakota), não saber lidar com a perda de uma pessoa próxima ou um pai alcoólatra ganham peso orgânico no desenvolvimento do roteiro, em vez de configurarem como um mero adereço dramático.
São temas recorrentes nas produções de Spielberg, que J. J. Abrams toma emprestado com aparente familiaridade, na tentativa de evocar a nostalgia do bom cinema-pipoca de antigamente, no qual a psicologização reverberava não no mal, e sim no bem. Talvez por isso Super 8 transpareça nos dias de hoje essa pegada ingênua com mais força. O filme pede a todo instante para lembrarmos como éramos naquela época, como acreditarmos naquelas histórias, como sempre ficávamos do lado da criatura, assustada, apenas querendo voltar para casa. Isso fica um pouco complicado quando você esconde o monstro na fotografia escura durante quase o filme inteiro. J. J. deixa essa peça fundamental para um único momento, quem sabe pelo fato de seu monstro ser menos simpático do que o ET criado pelo italiano Carlo Rambaldi – além da cena ser mais sobre o garoto do que sobre a criatura. A produção perde a chance de ser mais do que uma homenagem com apelo sincero, quase nunca saindo do rastro de sua fonte de inspiração. Carregado de uma nostalgia oportuna a quem está cansado da moda do 3D pós-produzido, Super 8 é uma brisa no deserto. Ainda que o discípulo nem arrisque superar o mestre.
15 de agosto de 2011
00h25
00h25
Por trás do escudo
(02/08/2011, às 06:50:04)
Quando Joe Johnston foi anunciado como o responsável por levar o personagem Capitão América para as telas tridimensionais do século XXI, ele estava lançando sua horrorosa versão pós-moderna de O Lobisomem. Sim, aquela estúpida perda de tempo com Benicio Del Toro “atuando” sob efeito de Rivotril e sir. Anthony Hopkins enjaulado em si mesmo. Dono de uma carreira irregular de poucos títulos, entreQuerida, Encolhi as Crianças e Mar de Fogo sua pérola era (ainda é) O Céu de Outubro, no qual revelou Jake Gyllenhaal. Sempre recordo bem seu segundo filme, Rocketeer, além de gostar muito de sua mão para o terceiro episódio da franquia Jurassic Park. Todavia, seu desarranjo ao ressuscitar um dos monstros-ícones da Universal foi tão amador que dificilmente alguém com mais de dois neurônios funcionando a todo vapor não temeria pela escolha da Marvel. Não tardou muito, Chris Evan apareceu vestindo a roupa do super-herói. “Agora lascou mesmo”, foi o pensamento geral, incluindo o meu. Como é bom dizer que estávamos errados.
Capitão América: O Primeiro Vingador não é um grande filme, existem falhas típicas de uma superprodução, incluindo aí (mais uma vez) o uso do 3D não como recurso narrativo, e sim financeiro. Na sessão que eu estava, uma pessoa comentou a falta de mais ação envolvendo o protagonista, no sentido de passar uma maior sensação de perigo. Concordo, fiquei incomodado com isso também. Não à toa: o Capitão América é um supersoldado durante a Segunda Guerra Mundial, requeria da produção situações mais audaciosas, mirabolantes, capazes de cortar o nosso fôlego. Durante todos os 124 minutos de projeção, procuramos por essa sensação sem encontrá-la. Outra coisa é o fato do filme nunca deixar de ser uma espécie de passarela para se chegar a Os Vingadores. Até o subtítulo faz questão de não esconder isso. O vilão Red Skull, feito por Hugo Weaving, está sempre se retirando estrategicamente, o que o faz perder sua credibilidade enquanto ameaça de alto nível cinematográfico. Mas isso é puramente sintomático, os vilões das comics adaptadas se tornaram bobos depois do Coringa de Heath Ledger. E o que Stan Lee faz ali se o herói é criação de Joe Simon e Jack Kirby, no ano de 1941?
Mas estávamos errados porque esses e outros detalhes não chegam a comprometer a diversão híbrida alcançada por Johnston. De maneira inteligente, o cineasta entrega uma aventura à moda antiga com o frescor do high tech. Ou seria uma aventura high tech com o frescor de uma narrativa à moda antiga? Seja como for, é exatamente tal opção que nos faz acreditar na pureza de Steve Rogers, o rapaz franzinho de bom coração e coragem o suficiente para não fugir de uma briga, mesmo sempre apanhando, ou se jogar sobre uma granada para, ingenuamente, salvar os colegas. Quem dera esses requisitos fossem pré toda vez diante da escolha de alguém para ganhar superpoderes. Seria o Capitão América o cruzamento do Homem-Aranha com o Superman? O espanto dos personagens, e do público, diante da mudança física de Chris Evans apenas mostra o quanto estavam dispostos a lançar um filme bem produzido, sem esquecer o fator humano envolvido para uma real ligação tela-espectador.
Vindo de comédias teens como Não é Mais um Besteirol Americano, ou o metido Tocha Humana de O Quarteto Fantástico e sua continuação, Evans consegue transmitir ao personagem a inocência de quem sempre foi vítima, mesmo depois de virar ídolo nacional para animar os esforços em plena guerra mundial. Nesse ponto, até a narrativa assume a ingenuidade das produções da época, quando Frank Capra fazia filmes para tornar os Estados Unidos uma nação otimista. Depois o capitão parte para a batalha, onde queria realmente estar, formando um grupo que, como pontua o crítico Luiz Carlos Merten, ecoa os Bastardos Inglórios de Tarantino. Nessa fórmula, a habitual dupla de roteiristas Christopher Markus e Stephen McFeely encontra a harmonia para, na contramão do existencialismo de Sartre, fazer a essência preceder a feitura. Difícil não se sentir à vontade com os movimentos da trama espelhando o passado, sem os desvios do psicologismo atual, ainda que o humor por vezes insista em sabotar nossa nostalgia. É como se Capitão América: O Primeiro Vingador quisesse, nas entrelinhas, nos tornar crianças novamente, sem sermos tratados como uma.
Veja como funciona a questão da expectativa. Se colocarmos Thor e Capitão América lado a lado, isso fica muito claro. Quem poderia esperar que Kenneth Branagh, diretor do primeiro, não fosse explorar as relações familiares da realeza de Asgard com o apelo de quem conhece Shakespeare como a palma da mão? Em vez disso, presenteou o público com um filme bobo e sem graça. Já todas as apostas contra Joe Johnston, quase um operário-padrão da indústria com alguma sensibilidade, se revelaram infundadas por conta de um grande tropeço. Ele acerta na leveza da narrativa como reflexo da natureza do herói e do contexto histórico no qual seu filme bebe na fonte. Johnston ainda tenta driblar as armadilhas do patriotismo exagerado da própria concepção de um personagem criado justamente para alavancar tal sentimento. Mas aí já é pedir demais de uma produção como essa, a vender a ideia do norte-americano perfeito, cujas fraquezas se convertem em fortaleza na hora de lutar pelo que é certo. A dica é não se concentrar no que está por trás do escudo, ou ainda no próprio escudo, as reminiscências da frustração do new deal. Saboreemos tudo o que ricocheteia: as delícias de um filme despretensiosamente divertido.
31 de julho de 2011
23h02
Publicado no jornal O Dia em 02 de agosto
23h02
Publicado no jornal O Dia em 02 de agosto
O menino que sobreviveu
Não é fácil sobreviver. Implica passar pela perda, compreender os ganhos, as mudanças, ver-se se tornar outro, deixar para trás os resquícios de si mesmo, empreender o movimento imperativo de continuar. Seguir em frente se constitui em assistir ao fim das coisas, as boas e as tristes, engolir a seco a sensação da vida não ser muito mais do que um adeus dado em longas prestações, em breves instantes de eternidade. A sobrevivência é o deus dos persistentes, a não lógica dos desenganados, a iluminação do desapego ao incontrolável. Nao é à vida que sobrevivemos, nem à perda dos amores ou à relutância em amadurecer. Superamos, na verdade, o fim de nós mesmos em cada situação vivida, em cada dor sentida, em cada alegria partilhada. Somos todos sobreviventes das próprias emanações, sejam elas quais forem. Como sair do cinema dez anos depois do primeiro capítulo de uma saga.
Mas não estou aqui para falar pelos milhões de fãs de Harry Potter, até porque nunca me considerei fã de carteirinha. Antes de tudo, sou cinéfilo, gosto dos filmes pelo que eles proporcionam. Vendo a comoção coletiva provocada pela criação literária de J. K. Rowling no início dos anos 90, apenas imagino como deva ser para a turma dessa geração chegar ao derradeiro capítulo, ou parte dele, das adaptações cinematográficas, todas devidamente bem sucedidas. O êxito dos filmes está escancarado em cada produção, no cuidado com que David Heyman, o homem que responde por toda a saga, tratou a transição das paginas de papel para a tela grande do cinema. Em Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2, chega-se ao ápice esperado desde 2001, quando A Pedra Filosofal deu o pontapé de inicio do que seria a mais rentável série de fantasia já adotada pela sétima arte. Uma década, oito filmes depois, Harry por fim abraça o seu destino, o inevitável confronto com Voldemort, numa conclusão a manter o rigor dos capítulos predecessores; todavia, sem conseguir, mais uma vez, alcançar o impacto narrativo tão caro às obras-primas da nossa memória.
O que não significa a saga não ecoar pelos anos vindouros. Potter e cia. são inquestionavelmente parte da cultura pop do começo do século XXI. Ajuda muito os atores terem sido mantidos os mesmos do primeiro ao ultimo filme, só fortalece a identidade da série. Vimos Daniel Radcliffe, Emma Watson, Rupert Grint, fora os coadjuvantes, crescerem na mesma medida em que as tramas iam ficando mais adultas, sombrias, urgentes. O rodízio de diretores também contribuiu para a manutenção do fôlego nesse tempo todo, cada um acrescentando sua visão aos conflitos imaginados por Rowling. Quando As Relíquias da Morte: Parte 2 inicia com a escola de Hogwarts mergulhada no cinza sem vida do domínio de Voldemort, não há mais rastros do batismo de Chris Columbus, que comandou os dois primeiros filmes e produziu o terceiro, O Prisioneiro de Azkaban, dirigido pelo mexicano Affonso Cuarón e um dos melhores capítulos, senão o melhor. A trilha sonora assinada agora por Alexandre Desplat nos lembra do fim desde os primeiros acordes melancólicos, embalando o confronto dos antagonistas na direção oposta à escala épica esperada numa produção desse nível.
Tal dose de ousadia, sempre muito bem vinda, não consegue evitar alguns deméritos para a obra. David Yates, à frente da serie desde A Ordem da Fênix, não imprime nunca a energia necessária ao desfecho aguardado há anos, retratando sem maior impacto as mortes que permeiam a historia. Embora já tenhamos vistos quase duas horas e meia (Parte 1), custa a engrenar, a revelar seu verdadeiro tema das linhas implícitas. As Relíquias da Morte: Parte 2 é, em essência, um filme sobre a aceitação da morte, do fim enquanto movimento necessário ao equilíbrio das coisas. Nesse sentido, as cenas nas quais Harry dialoga com seus entes mortos traduzem toda a natureza que cerceia tanto a saga como um todo quanto sua inevitável despedida. Sem falar na questão das escolhas, tratadas desde o inicio, aqui assumindo uma importância indispensável à conclusão das aventuras do bruxo mais famoso dos últimos tempos. Gosto desse fato do filme se desdobrar em harmonia dentro do próprio contexto, como se dissesse aos fãs que é preciso aceitar ser esta a última vez da espera ansiosa por mais uma viagem ao mundo de bruxos, muggles, elfos, duendes, plataformas de trem mágicas, comensais da morte e lições de verdadeira amizade.
Sim, não é fácil sobreviver ao fim de uma grande jornada. Ainda hoje me toca uma das cenas finais de O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei que mostra justamente isso, até a música vencedora do Oscar é acerca da questão. Peter Jackson foi mais na veia do que David Yates. Esperava uma morte mais densa para Voldemort, muito bem caracterizado por Ralph Fiennes. A grande surpresa-óbvia fica por conta do ambíguo personagem de Alan Rickman, Severo Snape. Acredito já ser clássica a frase proferida por ele – "Você tem os olhos de sua mãe." – num dos momentos tocantes de As Relíquias da Morte: Parte 2. A sequência seguinte recapitula todos os filmes, amarrando as pontas soltas. Snape termina como a figura mais trágica da franquia bilionária, fechada com a chave de ouro da trapaça, uma vez o 3D "usado" servir apenas para aumentar consideravelmente a bilheteria da produção. Contudo, nada disso importa perante o sentimento de se chegar ao fim de uma cinessérie tão marcante. Mesmo achando forçação de barra o epílogo com os atores debaixo de uma maquiagem nem um pouco convincente, parabenizo a decisão de finalizar num plano fechado dos três heróis, ainda que pudesse ter ido um pouquinho mais alem, enfatizando a popular cicatriz de Harry. Seja como for, valeu. Hoje não sou crítico de cinema ou metido a. Hoje sou apenas o menino que sobreviveu à saga Harry Potter.
17 de julho de 2011
21h19
Skids e Mudflap
Não sei se já fizeram, mas uma lista com os mais irritantes alívios cômicos do cinema seria desacreditada caso não tivesse os nomes Skids e Mudflap, assim mesmo, um ao lado do outro. Dentre todas as reverberações negativas do pavoroso Transformers: A Vingança dos Derrotados (sério, odeio esse subtítulo), nenhuma foi mais longe do que o apedrejamento em cima dos robôs-gêmeos estereotipando os negros norte-americanos fãs de hip-hop. A polêmica pelo exagero da caricatura percorreu um par de anos, até a produção anunciar o descarte dos dois no terceiro filme da franquia apadrinhada por Steven Spielberg, confiada a Michael Bay, o homem das destruições em grande escala. Talvez para tirar onda, um crítico afirmou que Skids e Mudflap estavam, sim, em Transformers: O Lado Oculto da Lua. O pavio do boca a boca foi reaceso com gás, levando Bay a oferecer uma recompensa de 25 mil dólares para quem encontrasse os gêmeos falastrões no novo capítulo. Nada mais estimulante para fazer o público ir em peso ao cinema conferir mais uma bomba.
Só isso para explicar o fato desta nova desventura cinematográfica dos brinquedos da Hasbro ter se tornado a terceira maior bilheteria de fim de semana de estreia nos Estados Unidos. Convenhamos que os ingressos mais caros das sessões 3D tenham dado uma ajudazinha e tanto. Embora Bay promova tudo aquilo o que se espera de um filme de ação em terceira dimensão, sua mão pesada extrapola os limites do bom senso ao torturar cinestesicamente o espectador com duas horas e meia da mais inebriante verborragia imagética no formato. Quando digo que passei dois dias doente após assistir a este O Lado Oculto da Lua, não foi apenas no sentido do filme ser ruim a ponto de me deprimir. Eu senti fisicamente as dores de uma queda do segundo andar de um prédio. Felizmente, não quebrei nenhum osso. Todavia, era como se eu tivesse tomado dois litros de Montila sozinho e ainda por cima levado uma surra de valentões eunucos. A partir de agora, pensarei três vezes antes de ir desprotegido a um filme dirigido por Michael Bay.
Porque o sujeito sabe como tocar o caos em planos que não ultrapassam quinze segundos. Tecnicamente, o filme é irrepreensível. O quebra-pau entre Autobots e Deceptions é de uma energia sem fim, tanto que quem levanta o lenço branco é o público, sem fôlego para continuar observando as mais inacreditáveis sequências, arrastadas ao máximo num roteiro constrangedoramente raso. A desculpa dessa vez vai buscar na lua o seu leitmotiv, mais precisamente na chegada do homem nela. Corromper a História é de longe o menor dos problemas num filme desses, o espectador está ali para experimentar até onde vão milhões de dólares gastos em softwares e criatividade. Mas o mínimo que se pode pedir é um enredo convincente a tornar os realísticos efeitos gráficos o recheio do bolo, não o bolo em si. Está além da “suspensão da descrença” distorcer a Guerra Fria em virtude de uma guerra no planeta Cybertron. Seja lá onde ele fica.
Dessa forma, Bay deixa claro que o roteiro é seu último interesse ao comandar uma produção grandiosa de robôs alienígenas se disfarçando em veículos. Quando não há cenas de cortar o fôlego, como quando o personagem de Shia LaBeouf é arremessado para fora do Camaro, enquanto o carro se transforma em Bumblebee, ataca alguns Deceptions e volta a ser carro a tempo do rapaz cair no banco, a narrativa se apoia inteiramente em gags bobas para continuar existindo. Ou então concebe planos de câmera voltados a satisfazer os desejos masculinos, no caso a já clássica sequência da caprichada bunda de Rosie Huntington-Whiteley subindo as escadas. Talvez seja a melhor “interpretação” da substituta de Megan Fox, pois a moça entrega uma “performance” digna de um Framboesa de Ouro, recitando seus diálogos como se estivesse o tempo se insinuando para o espectador com sussurros. Ou você se excita ou sai correndo. Pelo menos, ela permite a Michael Bay ter uma postura sincera uma única vez: quando compara suas “curvas” ao design de um veículo de colecionador. Pode algo ser mais constrangedor do que isso?
Talvez aqueles personagens que são descartados na maior cara de pau, tais os pais do protagonista e a ridícula participação de John Malkovich. Quem sabe o próprio astronauta da Apollo 11, Buzz Aldrin, dando seu aval à ridícula premissa ao olhar desajeitadamente para robôs gigantes que ele não vê. Não gosto de sentir vergonha alheia, mas nessa cena foi algo inevitável. Como se não bastasse, o desenrolar do roteiro de Ehren Kruger é tão besta que chega a ser confuso, jogando de qualquer jeito o longuíssimo terceiro ato para uma devastada Chicago. Aí, meu amigo, segure-se em quem puder. Bay possui a vantagem de fazer um bom uso do 3D, integrando-o à narrativa em relação aos planos mais abertos, fechados e à profundidade de campo – assim, não joga o espectador para fora do filme com um recurso que serve ao propósito contrário. Em contrapartida, há momentos nos quais o diretor deBad Boys e Armageddon parece esquecer quando se deve usar um plongée ou contra-plongée. Pode até não fazer diferença numa sequência fantástica como a do prédio caindo ao ser atacado por Sockwave. Mesmo assim, ao calcar sua dramaturgia na premissa do movimento, base da construção cinemática, ele não deveria vacilar em conceitos primários da linguagem cinematográfica. Seja como for, procurei meus 25 mil dólares em todos os frames que conseguia enxergar com clareza sem os bombardeios do cinemão high tech. Não descobri Skids ou Mudflap. Descobri outra coisa: em filmes como esse, deveriam distribuir um Engov antes e outro depois. Quem sabe assim a ressaca deTransformers: O Lado Oculto da Lua não teria sido tão devastadora.
Teresina, 4 de julho de 2011
0h57
0h57
Como um bom disco de vinil
(28/06/2011, às 06:39:17)
Já perdi a conta de quantas vezes os críticos, juntamente com o público, assassinaram e ressuscitaram Woody Allen. De 1969 para cá, apenas em quatro anos – 70, 74, 76 e 81 – ele não teve nenhum filme lançado. Um feito extraordinário. Se existe alguém que pode dar-se o luxo de cometer algumas besteiras, seja na vida profissional ou na real, esse é Woody. Até mesmo seu filme mais fraco possui algo inexistente na maioria dos cineastas desde a descoberta do cinema enquanto arte: personalidade. Estou falando de um jeito muito particular de observar as relações humanas, com um humor ácido, mas nunca ofensivo. Se ele está frequentemente repaginando os próprios temas, não importa. Seu cinema é um presente anual para quem deseja escapar das tramas sintéticas justificadas por efeitos especiais caríssimos ou do humor apelativo das comédias pós-modernas. O último grande diretor da velha escola? Apenas ouso lançar a pergunta.
Sendo assim, não foi com a surpresa da grande parte dos espectadores que saí do cinema revigorado após conferir Meia-Noite em Paris. Não se trata de uma comédia propriamente dita, mas de um romance ao estilo de O Retrato de Jennie (1948), sem a pegada melancólica. Owen Wilson faz as vezes de Woody como Gil Pender, um roteirista de Hollywood curtindo uma temporada em Paris ao lado da noiva (Rachel McAdams) e dos pais dela. Insatisfeito com o rumo de sua vida, apesar de bem sucedido, o rapaz desde o início demonstra um apego nostálgico ao passado, personificado pelo protagonista do livro que está escrevendo. A noiva, por sua vez, prefere se deslumbrar com o pedantismo intelectual de um amigo a se render perante a ingenuidade romântica do companheiro. Passeando sozinho pela cidade tarde da noite, o rapaz termina por se encontrar na Paris do início do século XX, sua “época de ouro”, numa dessas permissões fantásticas que somente o cinema é capaz de conceber.
E então ele pode interagir com figuras ilustres, como F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, escritores norte-americanos da chamada “geração perdida”, além de conferir o próprio Cole Porter cantando “Let’s do It (Let’s Falling in Love)”, trocar ideias com os jovens surrealistas Salvador Dalí, Man Ray e Luis Buñuel, além de freqüentar a lendária casa de número 27 da rue de Fleurus, residência da escritora e feminista Gertrude Stein. É numa dessas visitas que conhece Adriana (Marion Cotillard), amante de Pablo Picasso, apaixonando-se instantaneamente aos nossos olhos. Aos poucos, Gil vai se tornando distante de seu próprio tempo, seduzido pela possibilidade de viver no passado parisiense, ao passo de Adriana não esconder sua fascinação pela Belle Époque, sua “época de ouro”, quando acredita poder preencher seu vazio existencial conhecendo artistas do naipe dos pintores pós-impressionistas Henri de Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin e Edgar Degas. Nessas regressões. Gil terá a oportunidade de chegar a um insight maravilhoso acerca do estado da arte e do tempo em si.
De certo, Meia-Noite em Paris exige expectadores cultos, dado todos os personagens e referências a desfilarem pelo delicioso roteiro. O que não necessariamente precise afastar quem nunca ouviu falar em T. S. Eliot ou Henri Matisse. Prova disso é o filme ser a maior bilheteria até agora da carreira de Woody Allen – para se ter uma ideia, suas obras nunca ultrapassam a arrecadação de 20 milhões de dólares, pouquíssimo comparada ao termômetro de êxito nos Estados Unidos. Estatísticas à parte, gosto de pensar que o cineasta esteja formando pessoas com pelo menos curiosidade em sair do cinema, buscar todas as referências no Google, descobrir aquele universo fabuloso da própria história e, quem sabe, voltar para curtir melhor suas tiradas. Uma das minhas favoritas é a de Owen Wilson dando a Buñuel a premissa de O Anjo Exterminador, que este faria em 1962, e o futuro cineasta espanhol ficar repetindo algo como: “Mas eu não entendo por que eles não conseguem sair da casa.”
Diretor experiente que é, Woody faz os espectadores serem sugados para dentro de um enredo simples, bem acabado, não importando a bagagem cultural de cada um. Na verdade, é fácil entender a sua lógica de mostrar todas essas referências e ao mesmo tempo tirar sarro do intelectualismo pedante. Apenas Woody Allen consegue tal feito, à moda antiga, sem as firulas tecnológicas do cinema atual. De quebra, filma Paris como se estivesse captando sua grande paixão, Nova York. Muitos se aborrecem com o longo começo do filme, alternando pontos da Cidade Luz da manhã até o anoitecer ao som de uma gravação antiga. Eu gosto, faz sentido dentro da estrutura dramática do roteiro. No campo das performances, arranca uma ótima atuação de Owen Wilson, cuja persona casa bem com a ideia do personagem, como sempre um alter ego do cineasta. Marion Cotillard está linda, funcionando como âncora para acreditarmos nesse inusitado romance. Após o niilismo de seus últimos trabalhos, Woody Allen nos presenteia com uma fantasia otimista sobre ser saudosista, mas redescobrir seu tempo, sua época. Meia-Noite em Paris possui todas as imperfeições charmosas de um bom disco de vinil. Aquele que você deixa girando na vitrola depois que termina apenas para pôr a agulha no começo novamente.
Sendo assim, não foi com a surpresa da grande parte dos espectadores que saí do cinema revigorado após conferir Meia-Noite em Paris. Não se trata de uma comédia propriamente dita, mas de um romance ao estilo de O Retrato de Jennie (1948), sem a pegada melancólica. Owen Wilson faz as vezes de Woody como Gil Pender, um roteirista de Hollywood curtindo uma temporada em Paris ao lado da noiva (Rachel McAdams) e dos pais dela. Insatisfeito com o rumo de sua vida, apesar de bem sucedido, o rapaz desde o início demonstra um apego nostálgico ao passado, personificado pelo protagonista do livro que está escrevendo. A noiva, por sua vez, prefere se deslumbrar com o pedantismo intelectual de um amigo a se render perante a ingenuidade romântica do companheiro. Passeando sozinho pela cidade tarde da noite, o rapaz termina por se encontrar na Paris do início do século XX, sua “época de ouro”, numa dessas permissões fantásticas que somente o cinema é capaz de conceber.
E então ele pode interagir com figuras ilustres, como F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, escritores norte-americanos da chamada “geração perdida”, além de conferir o próprio Cole Porter cantando “Let’s do It (Let’s Falling in Love)”, trocar ideias com os jovens surrealistas Salvador Dalí, Man Ray e Luis Buñuel, além de freqüentar a lendária casa de número 27 da rue de Fleurus, residência da escritora e feminista Gertrude Stein. É numa dessas visitas que conhece Adriana (Marion Cotillard), amante de Pablo Picasso, apaixonando-se instantaneamente aos nossos olhos. Aos poucos, Gil vai se tornando distante de seu próprio tempo, seduzido pela possibilidade de viver no passado parisiense, ao passo de Adriana não esconder sua fascinação pela Belle Époque, sua “época de ouro”, quando acredita poder preencher seu vazio existencial conhecendo artistas do naipe dos pintores pós-impressionistas Henri de Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin e Edgar Degas. Nessas regressões. Gil terá a oportunidade de chegar a um insight maravilhoso acerca do estado da arte e do tempo em si.
De certo, Meia-Noite em Paris exige expectadores cultos, dado todos os personagens e referências a desfilarem pelo delicioso roteiro. O que não necessariamente precise afastar quem nunca ouviu falar em T. S. Eliot ou Henri Matisse. Prova disso é o filme ser a maior bilheteria até agora da carreira de Woody Allen – para se ter uma ideia, suas obras nunca ultrapassam a arrecadação de 20 milhões de dólares, pouquíssimo comparada ao termômetro de êxito nos Estados Unidos. Estatísticas à parte, gosto de pensar que o cineasta esteja formando pessoas com pelo menos curiosidade em sair do cinema, buscar todas as referências no Google, descobrir aquele universo fabuloso da própria história e, quem sabe, voltar para curtir melhor suas tiradas. Uma das minhas favoritas é a de Owen Wilson dando a Buñuel a premissa de O Anjo Exterminador, que este faria em 1962, e o futuro cineasta espanhol ficar repetindo algo como: “Mas eu não entendo por que eles não conseguem sair da casa.”
Diretor experiente que é, Woody faz os espectadores serem sugados para dentro de um enredo simples, bem acabado, não importando a bagagem cultural de cada um. Na verdade, é fácil entender a sua lógica de mostrar todas essas referências e ao mesmo tempo tirar sarro do intelectualismo pedante. Apenas Woody Allen consegue tal feito, à moda antiga, sem as firulas tecnológicas do cinema atual. De quebra, filma Paris como se estivesse captando sua grande paixão, Nova York. Muitos se aborrecem com o longo começo do filme, alternando pontos da Cidade Luz da manhã até o anoitecer ao som de uma gravação antiga. Eu gosto, faz sentido dentro da estrutura dramática do roteiro. No campo das performances, arranca uma ótima atuação de Owen Wilson, cuja persona casa bem com a ideia do personagem, como sempre um alter ego do cineasta. Marion Cotillard está linda, funcionando como âncora para acreditarmos nesse inusitado romance. Após o niilismo de seus últimos trabalhos, Woody Allen nos presenteia com uma fantasia otimista sobre ser saudosista, mas redescobrir seu tempo, sua época. Meia-Noite em Paris possui todas as imperfeições charmosas de um bom disco de vinil. Aquele que você deixa girando na vitrola depois que termina apenas para pôr a agulha no começo novamente.
25 de junho de 2011
11h51
Publicado no jornal O DIA em 28 de junho de 2011
11h51
Publicado no jornal O DIA em 28 de junho de 2011
Um Duelo Psicológico
(21/06/2011, às 08:04:31)
No início do século XX, a garotinha Baby Jane Hudson torna-se o centro das atenções, ao contrário de sua irmã, Blanche. Com um gênio forte e quase intolerável, mas dona de um talento nato e carismático para números musicais, Baby Jane encanta a todos cantando músicas singelas, como I’ve Written a Letter to Daddy. A situação se reverte nos anos 30, quando Blanche revela-se uma ótima atriz e faz enorme sucesso, e Jane amarga fracassos cinematográficos. Esta, em um momento de raiva, atropela a irmã e a deixa paraplégica. Começa aí um dos mais angustiantes clássicos norte-americanos, O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, de 1962: a velha e vingativa Jane mantém um relacionamento destrutivo e torturante com Blanche, enquanto tenta concretizar o seu retorno triunfal aos palcos.
Extraído do livro de Henry Farrel, o roteiro de Lukas Heller prima pelo clima pesado e pelo confronto psicológico entre as duas personagens principais. O Que Terá Acontecido a Baby Jane? é na verdade um drama familiar que aos poucos vai se revelando como um angustiante exercício de suspense. A direção de Robert Aldrich alterna-se com perfeição entre os dois gêneros sem que o espectador possa perceber isso de cara. À medida que o filme avança, a tensão se assume e a verdadeira personalidade da história – e da personagem-título – vai tomando forma. Graças à direção bem arquitetada, esse processo acontece sem erros ou tropeços.
A trama do livro é sem dúvida complexa e original, ainda mais para a sua época. Hoje em dia vemos com facilidade histórias de pessoas frustradas que se vingam ou aprisionam seus “ídolos”, como emLouca Obsessão, com a psicótica personagem de Kathy Bates. Um filme nada tem a ver com o outro, embora pelo fato de que se lembram pelo contexto geral e pelo ambiente: O Que Terá Acontecido a Baby Jane? passa-se quase inteiramente dentro de uma casa. Certas partes lembram muito a versão moderna de O Sol por Testemunha, como o dom de Jane para imitar a voz da irmã e falsificar a assinatura dela.
Bette Davis, indicada ao Oscar de Melhor Atriz por este filme, está em uma atuação brilhante e perturbadora, ao lado da também fabulosa Joan Crawford. Elas interpretam Jane e Blanche Hudson, respectivamente. O que torna Jane uma personagem fascinante e assustadora é que aparentemente ela não sabe o que está fazendo. Ela é uma velha frustrada e ingênua que interiormente continua sendo a mesma menininha do início do filme. Só que na verdade a sua inveja e o seu rancor pela irmã a tornam uma pessoa desequilibrada e extremamente perigosa. Outro que brilha aqui é Victor Buono, vivendo um músico à procura de uma chance e indicado ao Oscar de Ator Coadjuvante.
O Que Terá Acontecido a Baby Jane? nos coloca no centro de um relacionamento unilateral e corrosivo. É um filme chocante por dar vida à inveja e à loucura. Uma pérola irretocável que mostra o quanto a magia de ser artista e famosa pode destruir uma pessoa. Ainda temos uma revelação final aterradora que põe em cheque nossa visão pessoal sobre as duas protagonistas. Nada mal para um clássico do cinema, não?
Extraído do livro de Henry Farrel, o roteiro de Lukas Heller prima pelo clima pesado e pelo confronto psicológico entre as duas personagens principais. O Que Terá Acontecido a Baby Jane? é na verdade um drama familiar que aos poucos vai se revelando como um angustiante exercício de suspense. A direção de Robert Aldrich alterna-se com perfeição entre os dois gêneros sem que o espectador possa perceber isso de cara. À medida que o filme avança, a tensão se assume e a verdadeira personalidade da história – e da personagem-título – vai tomando forma. Graças à direção bem arquitetada, esse processo acontece sem erros ou tropeços.
A trama do livro é sem dúvida complexa e original, ainda mais para a sua época. Hoje em dia vemos com facilidade histórias de pessoas frustradas que se vingam ou aprisionam seus “ídolos”, como emLouca Obsessão, com a psicótica personagem de Kathy Bates. Um filme nada tem a ver com o outro, embora pelo fato de que se lembram pelo contexto geral e pelo ambiente: O Que Terá Acontecido a Baby Jane? passa-se quase inteiramente dentro de uma casa. Certas partes lembram muito a versão moderna de O Sol por Testemunha, como o dom de Jane para imitar a voz da irmã e falsificar a assinatura dela.
Bette Davis, indicada ao Oscar de Melhor Atriz por este filme, está em uma atuação brilhante e perturbadora, ao lado da também fabulosa Joan Crawford. Elas interpretam Jane e Blanche Hudson, respectivamente. O que torna Jane uma personagem fascinante e assustadora é que aparentemente ela não sabe o que está fazendo. Ela é uma velha frustrada e ingênua que interiormente continua sendo a mesma menininha do início do filme. Só que na verdade a sua inveja e o seu rancor pela irmã a tornam uma pessoa desequilibrada e extremamente perigosa. Outro que brilha aqui é Victor Buono, vivendo um músico à procura de uma chance e indicado ao Oscar de Ator Coadjuvante.
O Que Terá Acontecido a Baby Jane? nos coloca no centro de um relacionamento unilateral e corrosivo. É um filme chocante por dar vida à inveja e à loucura. Uma pérola irretocável que mostra o quanto a magia de ser artista e famosa pode destruir uma pessoa. Ainda temos uma revelação final aterradora que põe em cheque nossa visão pessoal sobre as duas protagonistas. Nada mal para um clássico do cinema, não?
Meu orgulho Mutante
O cursor de texto pisca, pedindo que eu revele a verdade: sou um mutante, senhoras e senhores. Não leio mentes, não manipulo metal, muito menos me teletransporto ou imito as formas de outros seres vivos. Sou um mutante sem poderes extraordinários. Apenas observo, absorvo, escrevo. Meu codinome é Espectador, de uma raça muitas vezes esquecida, subestimada. A cada sessão de cinema, sou transfigurado por sensações diversas, intensas, destruo e reconstruo meu próprio mundo; volto para casa transformado ainda sendo eu mesmo. Uma mutação complexa, além de perigosa. Se o filme é bom, minha aura emite uma luz radiante de estar conectado às coisas. Se é ruim, fico verde de disenteria, com umas manchas melancólicas azuis pelo corpo. Experimento isso toda vez. É tenso ser o Espectador. Felizmente, "X-Men: Primeira Classe" não me deixou verde. Tampouco fez minha aura radiar.
Digamos que eu tenha ficado neutro perante as “origens” da turma de mutantes criada por Stan Lee e Jack Kirby em 1963 para os quadrinhos, recriada por Bryan Singer em 2000 para o cinema. A trilogia original tinha um arco fechado. Do primeiro filme a "O Confronto Final", de 2006, tal intenção é clara: a guerra prevista por Magneto é martelada desde o início, bem como o foco em Jean Grey, sutil a princípio, assumido apenas no final do segundo capítulo. Com os três filmes concluídos, os spin-offs começaram a ser cogitados – um de Magneto, outro de Wolverine. Este último chegou a acontecer, desastrosamente, em 2009. Então Hollywood adentrou a era dos reboots, as “origens” de grandes personagens sendo (re)contadas. A “origem” do jovem Eric Lehnsherr terminou por ser descartada pela ideia de recomeçar a série do zero. Afinal, todos nós queríamos saber como Charles Xavier ficara paralítico e sua amizade com Eric perdera para a ascensão do vilão Magneto. Ou será que não?
Vamos por partes. Para iniciar a conversa, "X-Men: Primeira Classe" não é fiel nem às publicações originais da revista de Lee/Kirby nem à minissérie de Jeff Parker (2006) que empresta seu título ao filme. O argumento de Sheldon Turner e Bryan Singer (ele quase chegou a comandar esta nova aventura) se empenha em respeitar os filmes anteriores, mas comete algumas falhas, como pôr Raven/Mística sendo meio-irmã de Xavier, sendo que isso nunca foi sequer insinuado pelo cinema até então. Tal opção ajuda a dinamizar a narrativa, ao possibilitar o futuro Magneto a seduzir Raven para o lado negro da espécie. Contudo, essa pulga fica incomodando por trás da orelha, além de nos fazer antecipar os acontecimentos. Este é um dos problemas das “origens”, sabemos o que vai acontecer, só não como. Da primeira classe dos X-Men nos quadrinhos, apenas Hank McCoy/Fera está na trama, que se passa durante a crise dos mísseis de Cuba em 1962, um ano antes da revista ter sido publicada. Mas isso não passa de detalhes irrelevantes que devem incomodar somente os conservadores mais neuróticos.
O importante é nos atermos aos movimentos cruciais do filme dirigido por Matthew Vaughn, de "Kick Ass – Quebrando Tudo". Ele optou por iniciar "Primeira Classe" com a mesma cena do começo de "X-Men: O Filme", repetindo, ousadamente, os enquadramentos de Singer, com alguns inserts seus para introduzir o personagem de Kevin Bacon, o vilão da aventura. Sebastian Shaw assassina a mãe do jovem Eric, liberando seus poderes com metal por meio da raiva, numa cena de impacto. Mais tarde Xavier irá ensiná-lo a fazer a mesma coisa utilizando outros mecanismos mentais, estabelecendo um contraponto interessante. Com essa deixa, devo dizer que gostei do desenvolvimento da amizade entre Xavier e Eric. Temia não conseguirem nos fazer participar dela, mas felizmente estava enganado. Ponto para o filme, uma vez sua espinhal dorsal sendo justamente a relação entre os dois personagens.
Interpretados por James McAvoy e Michael Fassbender, respectivamente, o segundo rouba a cena, fora um ou outro exagero de atuação. O diretor e co-roteirista Vaughn se volta mais aos personagens do que para a ação propriamente dita, querendo explicar (quase) tudo relacionado ao que já conhecíamos. A interação de Raven (Jennifer Lawrence) com McCoy (Nicholas Hoult) é uma subtrama relevante por destacar alguns dos temas-chave da série "X-Men", como preconceito, rejeição e auto aceitação. O plano subjetivo de McCoy quando se transforma no Fera é, junto com a cena do submarino sendo erguido, um dos momentos inspirados da direção de Matthew Vaughn, que consegue pôr a crise dos mísseis como foco da ação de maneira orgânica, embora termine por simplificar um dos episódios mais tensos do século XX. A grande derrapada dele é não acentuar os momentos que deveriam ser os de maior impacto nessa “origem”, aqueles a porem cada um em seu devido lugar. Não senti nenhum calafrio ao ver Eric colocar em si o capacete de Shaw e virar Magneto. Aliás, uma relação extremamente complexa e fascinante, capaz de fazer "Primeira Classe" ser de fato um blockbuster para adultos. Com duas aparições muito bem vindas, sai-se melhor que o último filme (não estou contando com o fraco “X-Men Origens: Wolverine") e deve agradar sem problemas aos Espectadores que, iguais a mim, sentem orgulho de ser mutantes.
Digamos que eu tenha ficado neutro perante as “origens” da turma de mutantes criada por Stan Lee e Jack Kirby em 1963 para os quadrinhos, recriada por Bryan Singer em 2000 para o cinema. A trilogia original tinha um arco fechado. Do primeiro filme a "O Confronto Final", de 2006, tal intenção é clara: a guerra prevista por Magneto é martelada desde o início, bem como o foco em Jean Grey, sutil a princípio, assumido apenas no final do segundo capítulo. Com os três filmes concluídos, os spin-offs começaram a ser cogitados – um de Magneto, outro de Wolverine. Este último chegou a acontecer, desastrosamente, em 2009. Então Hollywood adentrou a era dos reboots, as “origens” de grandes personagens sendo (re)contadas. A “origem” do jovem Eric Lehnsherr terminou por ser descartada pela ideia de recomeçar a série do zero. Afinal, todos nós queríamos saber como Charles Xavier ficara paralítico e sua amizade com Eric perdera para a ascensão do vilão Magneto. Ou será que não?
Vamos por partes. Para iniciar a conversa, "X-Men: Primeira Classe" não é fiel nem às publicações originais da revista de Lee/Kirby nem à minissérie de Jeff Parker (2006) que empresta seu título ao filme. O argumento de Sheldon Turner e Bryan Singer (ele quase chegou a comandar esta nova aventura) se empenha em respeitar os filmes anteriores, mas comete algumas falhas, como pôr Raven/Mística sendo meio-irmã de Xavier, sendo que isso nunca foi sequer insinuado pelo cinema até então. Tal opção ajuda a dinamizar a narrativa, ao possibilitar o futuro Magneto a seduzir Raven para o lado negro da espécie. Contudo, essa pulga fica incomodando por trás da orelha, além de nos fazer antecipar os acontecimentos. Este é um dos problemas das “origens”, sabemos o que vai acontecer, só não como. Da primeira classe dos X-Men nos quadrinhos, apenas Hank McCoy/Fera está na trama, que se passa durante a crise dos mísseis de Cuba em 1962, um ano antes da revista ter sido publicada. Mas isso não passa de detalhes irrelevantes que devem incomodar somente os conservadores mais neuróticos.
O importante é nos atermos aos movimentos cruciais do filme dirigido por Matthew Vaughn, de "Kick Ass – Quebrando Tudo". Ele optou por iniciar "Primeira Classe" com a mesma cena do começo de "X-Men: O Filme", repetindo, ousadamente, os enquadramentos de Singer, com alguns inserts seus para introduzir o personagem de Kevin Bacon, o vilão da aventura. Sebastian Shaw assassina a mãe do jovem Eric, liberando seus poderes com metal por meio da raiva, numa cena de impacto. Mais tarde Xavier irá ensiná-lo a fazer a mesma coisa utilizando outros mecanismos mentais, estabelecendo um contraponto interessante. Com essa deixa, devo dizer que gostei do desenvolvimento da amizade entre Xavier e Eric. Temia não conseguirem nos fazer participar dela, mas felizmente estava enganado. Ponto para o filme, uma vez sua espinhal dorsal sendo justamente a relação entre os dois personagens.
Interpretados por James McAvoy e Michael Fassbender, respectivamente, o segundo rouba a cena, fora um ou outro exagero de atuação. O diretor e co-roteirista Vaughn se volta mais aos personagens do que para a ação propriamente dita, querendo explicar (quase) tudo relacionado ao que já conhecíamos. A interação de Raven (Jennifer Lawrence) com McCoy (Nicholas Hoult) é uma subtrama relevante por destacar alguns dos temas-chave da série "X-Men", como preconceito, rejeição e auto aceitação. O plano subjetivo de McCoy quando se transforma no Fera é, junto com a cena do submarino sendo erguido, um dos momentos inspirados da direção de Matthew Vaughn, que consegue pôr a crise dos mísseis como foco da ação de maneira orgânica, embora termine por simplificar um dos episódios mais tensos do século XX. A grande derrapada dele é não acentuar os momentos que deveriam ser os de maior impacto nessa “origem”, aqueles a porem cada um em seu devido lugar. Não senti nenhum calafrio ao ver Eric colocar em si o capacete de Shaw e virar Magneto. Aliás, uma relação extremamente complexa e fascinante, capaz de fazer "Primeira Classe" ser de fato um blockbuster para adultos. Com duas aparições muito bem vindas, sai-se melhor que o último filme (não estou contando com o fraco “X-Men Origens: Wolverine") e deve agradar sem problemas aos Espectadores que, iguais a mim, sentem orgulho de ser mutantes.
5 de junho de 2011
17h13
Publicado no jornal O Dia em 7 de junho de 2011
17h13
Publicado no jornal O Dia em 7 de junho de 2011
DANDO UM TAPA NA MACACA
(31/05/2011, às 07:25:05)
Uma das grandes surpresas de 2009, Se Beber, Não Case! se tornou a comédia adulta de maior sucesso dos últimos anos. Quer dizer, não há muito de adulto numa despedida de solteiro em Las Vegas da qual três marmanjos já na casa dos trinta acordam sem lembrar coisa alguma com um bebê no armário, o tigre de Mike Tyson no banheiro, um dente arrancado e, pior, o noivo desaparecido. O cineasta Todd Phillips estava consolidando sua carreira em cima desse nicho explorado pela série Friends e depois por Judd Apatow: o recorte cômico na turma que devera ter deixado a adolescência para trás, mas continua agindo como tal. É como se os jovens de John Hughes tivessem crescido sem amadurecer de fato. Os norte-americanos viraram adultos ainda curtindo o hedonismo da mocidade. E o cinema descobre mais um filão.
Se você me perguntar o que veio primeiro, a adolescência tardia ou os filmes sobre ela, talvez eu respondesse Ferris Bueller. A síndrome do protagonista de Curtindo a Vida Adoidado (1986) afeta as pessoas até hoje. Quem não quer tirar um dia de folga das pressões e amarras sociais e aproveitar intensamente cada segundo, mesmo que seja na mais louca piração do álcool e das drogas junto com os amigos? A sacada genial de Se Beber, Não Case! é justamente se concentrar no depois da farra, nas consequências de se amanhecer com aquela ressaca sem saber o que diabos aconteceu. A trama passa a ser uma investigação desse branco alcoólico e cada descoberta é absurdamente inusitada e engraçadíssima. Quando o filme termina, você se sente renovado como após uma boa noite de desopilação, com a certeza de que repetir a dose não seria tão ruim assim.
Mas é. Pelo menos em Se Beber, Não Case! – Parte II, novamente sob o comando de Todd Phillips e com o mesmo elenco do filme original. Dessa vez, o bando de lobos formado por Phil (Bradley Cooper), Stu (Ed Helms), Doug (Justin Bartha) e o tresloucado Alan (Zach Galifianakis) está na Tailândia para celebrar o casamento de Stu. Minhas dúvidas acerca de como iriam desenvolver a continuação de um enredo tão bem estruturado como é o do primeiro filme foram respondidas em apenas um minuto ou dois de projeção: simplesmente repetindo-a. Essa Parte II é descaradamente um remake da produção anterior. Trocaram Las Vegas por Bangcoc com todo o seu exotismo, o tigre por um macaquinho esperto, o dente arrancado pela tatuagem do Mike Tyson e o noivo sumido pelo irmão da noiva. De resto, o movimento da narrativa é e-x-a-t-a-m-e-n-t-e o mesmo, com um humor mais apelativo embalado em encrencas ainda mais absurdas.
Tanto que no fundo torcemos para gostarmos do filme, pois algumas situações são hilárias e a química entre os personagens continua funcionando. Não me incomodam as piadas intransigentes desse segundo capítulo, digamos assim. A ousadia do humor escrachado, por vezes ofensivo, sempre teve seu público cativo, além de ser válido quando organicamente integrado à trama. Esse não é de longe o maior problema de Se Beber, Não Case! – Parte II. Desde mostrar o micropênis do chinês Mr. Chow (que retorna forçadamente à franquia) a nus frontais de ladyboys, como são chamados os travestis asiáticos, Phillips e cia. fazem o possível para a próxima gag ser mais chocante que a outra. Os risos da plateia soam mais como espantos; algumas pessoas podem até tentar manter o controle, mas impossível é ficar indiferente. “Um macaco chupando um monge é engraçado em qualquer língua”, comenta Galifianakis na cena referente. Apenas demonstra a insistência do roteiro em se achar divertidíssimo, sem medo de estarmos ou não surfando na mesma onda.
Podemos até estar, em alguns momentos, mas isso não esconde o fato da gag mais elaborada da produção ser justamente sua grande falha: a repetição cartesiana da estrutura do original. Por mais divertida que possa parecer, sob um prisma macro da coisa, soa como algo aborrecido, sem criatividade. Na verdade, revela-se como o insight primário dos realizadores. Isso, sim, me incomoda em termos de narrativa, uma vez se tornando fácil antever a reação de cada personagem. Eles atravessam os mesmos vieses, noutro contexto, para finalizar com os mesmos recursos, interessantes no primeiro filme. O que não dá para perdoar é o melhor ator do filme, o macaquinho (na verdade, uma macaca chamada Crystal), ter um desfecho absolutamente fraco, com Zach Galifianakis repetindo a cena que fez com o cachorrinho em Um Parto de Viagem, também dirigido por Phillips. Contando com as participações pequenas de Paul Giamatti, do cineasta Nick Cassavetes substituindo Liam Neeson – após o elenco ter vetado o polêmico Mel Gibson – na pele de um tatuador e Mike Tyson outra vez se “interpretando”, Se Beber, Não Case! – Parte II nada mais é do que o plágio escancarado da própria piada. E isso não tem graça nenhuma.
Se você me perguntar o que veio primeiro, a adolescência tardia ou os filmes sobre ela, talvez eu respondesse Ferris Bueller. A síndrome do protagonista de Curtindo a Vida Adoidado (1986) afeta as pessoas até hoje. Quem não quer tirar um dia de folga das pressões e amarras sociais e aproveitar intensamente cada segundo, mesmo que seja na mais louca piração do álcool e das drogas junto com os amigos? A sacada genial de Se Beber, Não Case! é justamente se concentrar no depois da farra, nas consequências de se amanhecer com aquela ressaca sem saber o que diabos aconteceu. A trama passa a ser uma investigação desse branco alcoólico e cada descoberta é absurdamente inusitada e engraçadíssima. Quando o filme termina, você se sente renovado como após uma boa noite de desopilação, com a certeza de que repetir a dose não seria tão ruim assim.
Mas é. Pelo menos em Se Beber, Não Case! – Parte II, novamente sob o comando de Todd Phillips e com o mesmo elenco do filme original. Dessa vez, o bando de lobos formado por Phil (Bradley Cooper), Stu (Ed Helms), Doug (Justin Bartha) e o tresloucado Alan (Zach Galifianakis) está na Tailândia para celebrar o casamento de Stu. Minhas dúvidas acerca de como iriam desenvolver a continuação de um enredo tão bem estruturado como é o do primeiro filme foram respondidas em apenas um minuto ou dois de projeção: simplesmente repetindo-a. Essa Parte II é descaradamente um remake da produção anterior. Trocaram Las Vegas por Bangcoc com todo o seu exotismo, o tigre por um macaquinho esperto, o dente arrancado pela tatuagem do Mike Tyson e o noivo sumido pelo irmão da noiva. De resto, o movimento da narrativa é e-x-a-t-a-m-e-n-t-e o mesmo, com um humor mais apelativo embalado em encrencas ainda mais absurdas.
Tanto que no fundo torcemos para gostarmos do filme, pois algumas situações são hilárias e a química entre os personagens continua funcionando. Não me incomodam as piadas intransigentes desse segundo capítulo, digamos assim. A ousadia do humor escrachado, por vezes ofensivo, sempre teve seu público cativo, além de ser válido quando organicamente integrado à trama. Esse não é de longe o maior problema de Se Beber, Não Case! – Parte II. Desde mostrar o micropênis do chinês Mr. Chow (que retorna forçadamente à franquia) a nus frontais de ladyboys, como são chamados os travestis asiáticos, Phillips e cia. fazem o possível para a próxima gag ser mais chocante que a outra. Os risos da plateia soam mais como espantos; algumas pessoas podem até tentar manter o controle, mas impossível é ficar indiferente. “Um macaco chupando um monge é engraçado em qualquer língua”, comenta Galifianakis na cena referente. Apenas demonstra a insistência do roteiro em se achar divertidíssimo, sem medo de estarmos ou não surfando na mesma onda.
Podemos até estar, em alguns momentos, mas isso não esconde o fato da gag mais elaborada da produção ser justamente sua grande falha: a repetição cartesiana da estrutura do original. Por mais divertida que possa parecer, sob um prisma macro da coisa, soa como algo aborrecido, sem criatividade. Na verdade, revela-se como o insight primário dos realizadores. Isso, sim, me incomoda em termos de narrativa, uma vez se tornando fácil antever a reação de cada personagem. Eles atravessam os mesmos vieses, noutro contexto, para finalizar com os mesmos recursos, interessantes no primeiro filme. O que não dá para perdoar é o melhor ator do filme, o macaquinho (na verdade, uma macaca chamada Crystal), ter um desfecho absolutamente fraco, com Zach Galifianakis repetindo a cena que fez com o cachorrinho em Um Parto de Viagem, também dirigido por Phillips. Contando com as participações pequenas de Paul Giamatti, do cineasta Nick Cassavetes substituindo Liam Neeson – após o elenco ter vetado o polêmico Mel Gibson – na pele de um tatuador e Mike Tyson outra vez se “interpretando”, Se Beber, Não Case! – Parte II nada mais é do que o plágio escancarado da própria piada. E isso não tem graça nenhuma.
28 de maio de 2011
14h14
Publicado no jornal O Dia em 31 de maio de 2011
14h14
Publicado no jornal O Dia em 31 de maio de 2011
UM RISO PARA CADA GRITO
Em determinado momento de Pânico 4, a voz do assassino mascarado Ghostface pergunta à sua próxima vítima qual o primeiro filme de serial killer da história do cinema. Automaticamente, a resposta veio na ponta da minha língua: The Lodger, Alfred Hitchcock, 1926. Devo ter compreendido errado o desafio; tanto eu quanto a pobre vítima erramos. O filme mencionado é A Tortura do Medo, Michael Powell, 1960. Assim como ela, eu seria apunhalado pela faca do sarcasmo sádico de Ghostface, soltaria algum comentário estúpido e engraçado e morreria em seguida. Uma gag, sem sombra de dúvida. O grito se dispersa num riso nervoso, a lógica para a geração anestesiada pelo torture porn da série Jogos Mortais retroceder no tempo e lembrar como era divertido ir ao cinema nos anos 90 (segunda metade) para assistir a um terror adolescente. Só por isso, Pânico 4 vale o ingresso.
Retomando a franquia 11 onze anos depois do suposto encerramento da trilogia, o diretor Wes Craven e o roteirista Kevin Williamson propõem um novo capítulo para a saga (sim, quatro filmes são uma saga) de Sidney Prescott. Aparentemente recuperada das tragédias anteriores, ela volta a Woodsboro para lançar seu livro, sua vivência dos fatos retratados com oportunismo pela outrora repórter Gale Weathers, agora casada com o xerife Dewey. Para quem não recorda, ele a pede em casamento no terceiro filme. De qualquer modo, é apenas uma desculpa para os assassinatos recomeçarem na pacata cidade, dessa vez seguindo as novas regras dos filmes do gênero. Quase numa metalinguagem, somos apresentados aos novos clichês da época atual, numa mistura de slasher movie e comentário irônico acerca de a que ponto chegou o nível de tais produções.
Quando Pânico virou febre teen em 1996, o terror passava pela crise dos repetecos advindos das obras dos anos 1980. Já não eram novidade as sequências de A Hora do Pesadelo e Sexta-Feira 13, ou subprodutos desses e de Halloween. Até mesmo os filmes de fantasmas caíram para o B e não tinham um público bem definido. Foi Williamson quem “reinventou” a linguagem para conquistar os adolescentes do final de século, dialogando com eles numa fórmula que deu certo até se esgotar com todas as virações possíveis. A mesma tendência pode ser verificada na década seguinte: os Jogos Mortais da vida se proliferaram além da série oficial e geraram verdadeiras aberrações escatológicas, surfando na onda dos realities shows para fazer de nós voyeurs compulsivos do sadismo humano. Como todo ciclo, encontra-se em crise. E mais uma vez a dupla Craven/Williamson tira proveito da situação.
Mas se a ocasião faz o ladrão, eles bem que podiam ter arquitetado um roubo melhor, um crime que não deixasse pistas para os sanguinários patrulheiros do torture porn irem ao encalço e tomarem o público de volta. Sim, pois a carne é fraca, ainda mais quando está crua. Não quero com isso oferecer um certificado de mediocridade a Pânico 4. Até porque, se você conhece os outros filmes, entende a proposta da auto-paródia que separa a série dos filmes sérios e pretensiosos. Aqui, o susto é a grande atração, até mesmo quando é apenas uma cabeçada num vaso pendurado. É esse o espírito da coisa. Acentuado pelo score de Marco Beltrami, tudo é um susto em potencial. Mesmo sendo um recurso batido, ele é usado como gag e por isso funciona. Aliás, praticamente tudo é gag em Pânico 4, fazendo do filme um comentário, às vezes cínico e noutras bobo, de si mesmo.
E em meio a esses comentários, Craven e Williamson brincam com o espectador pipocando referências, um atrativo que geralmente não prejudica. O problema é quando soam forçadas e/ou repetitivas, como em diversos momentos da trama. Alguns personagens saem de si para virarem caricaturas, caso de Gale Weathers, e pontos específicos da premissa dos novos clichês passam batidos (mostrar as pessoas assistindo ao videolog do assassino teria sido interessante justamente por exemplificar com mais contundência a questão voyeurística da geração Y). Por outro lado, é divertido suspeitar de alguém diferente a cada cinco minutos, como num bom whodunit (abreviação de “Who has done it?” ou “Quem fez isso?”), mesmo o roteiro sendo ingênuo em nos forçar a desconfiar em excesso de dado personagem. Sinto muito, Mr. Williamson, não funciona. Como se não bastasse, a lógica de Dewey e Gale para descobrir o verdadeiro assassino é falha, visto que ela escreveu um livro sobre os acontecimentos originais, então os detalhes são de conhecimento público. Fora todos os seus defeitos, Pânico 4 é um “terrir” divertidíssimo e dirigido com energia por Wes Craven, ainda mestre no gênero e que não se furta a concluir seu filme com um comentário acerca da indulgência provocada pela rapidez com a qual a informação é atualmente difundida. Na época do Twitter, Jigsaw iria para os Trendings Topics como herói segundos antes de descobrirem que era exatamente o contrário.
Teresina, 16 de abril de 2011
16h44
Publicado em 19 de abril de 2011
Como se faz uma sereia chorar
É estranho Johnny Depp não ter um crédito de produtor executivo neste Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas. Além de seu personagem, o intrépido e afetado capitão Jack Sparrow, ter cacife suficiente para dar uma mordida nos lucros do filme, o ator está diretamente envolvido com diversas decisões criativas do quarto episódio da franquia live action mais bem sucedida da Disney. Só para citar alguns exemplos, temos o enredo de On Stranger Tides, livro de Tim Powers, como base para a nova aventura, a escolha de Rob Marshall para substituir Gore Verbinski na direção e a presença da amiga Penélope Cruz como Angélica, seu par romântico e filha de Edward Teach, o famoso pirata Barba Negra do folclore norte-americano. Fora a participação de seu ídolo, Keith Richards, como pai do icônico personagem que lhe foi inspirado.
Se tais sugestões tiveram a melhor das intenções, não se pode dizer terem sido as melhores. Mas vamos com calma que o trajeto é longo e instável como o mar revolto das caraíbas na época dos temíveis e fascinantes piratas, termo usado pela primeira vez por Homero, em sua Odisseia. Navegando em Águas Misteriosas começa com Jack de posse de um mapa para a lendária Fonte da Juventude, o que levará ingleses e espanhóis a travarem uma corrida para ver quem chega primeiro. Após fugir do agora corsário Barbossa (Geoffrey Rush), Sparrow é salvo pelo pai, numa das muitas viradas inorgânicas da trama, para descobrir os procedimentos adequados perante a Fonte. Só eu tive um déjà vu nessa cena ao lembrar a última cruzada de Indiana Jones, quando Harrison Ford e Sean Connery discutem a mesma coisa em relação ao Santo Graal? Se no filme de Spielberg a relação pai e filho é um dos eixos da narrativa, aqui é apenas uma desculpa para o guitarrista dos Rolling Stones fazer piada com o próprio rosto e desaparecer feito assombração.
Em seguida, Penélope Cruz e seu inglês tropeçado conferem movimento à trama, ainda que na encheção de linguiça em sequências longas e já saturadas do casal discutindo a relação enquanto enfrentam soldados do rei e demais obstáculos do roteiro da dupla Ted Elliott e Terry Rossio. Cruz demonstra saber lidar com o timing cômico, e até a fotografia de Dariusz Wolski lhe confere simpatia. Contudo, seu personagem se afunda na caricatura da mulher ardilosa pela qual todo homem bonzinho é enganado e desenganado ao mesmo tempo. Sobra para o protagonista entrar no jogo e usá-lo ao seu favor. Felizmente, Jack Sparrow é um daqueles personagens tão bem sacados que supera as embolias do fiapo de enredo. Do livro de Powers, publicado em 1987, permaneceram Barba Negra (Ian McShane) e seu Queen Anne’s Revenge tripulado por zumbis, além da Fonte da Juventude como leitmotiv da narrativa. Ademais, segundo o próprio autor, seu Jack Shandy em nada tem a ver com o pirata da série do produtor Jerry Bruckheimer.
Que a priori não lhe confere um reboot, mas prossegue as aventuras caribenhas sem os personagens de Orlando Bloom e Keira Knight. Um pensamento lógico até: de todos, Sparrow é o único que justificaria um spin-off. E Depp continua (se) divertindo na pele tresloucada de Jack, mesmo não acrescentando nem frescor nem nostalgia ao seu papel mais popular. Talvez Piratas do Caribe devesse ter demorado um pouco mais para ser retomado, daria outra áurea à diversão proporcionada. Seja como for, aqui é preciso engolir um Rob Marshall (Chicago, Nine) dirigindo sem qualquer personalidade ou criatividade no uso do 3D, coreografando as peripécias de seus atores como se estivessem nos brinquedos da Disneyworld ou no Maratoma do Faustão. Sua indulgência deixa o roteiro ir jogando coisas para esticar a história ao máximo. Nisso, o percurso do Queen Anne’s Revenge e seus concorrentes absorve todos os tipos de gags e desvios narrativos permitidos pelo bom senso, desde enfrentar motins temporários a antecipar estupidamente o destino de certos personagens, passando por romances forçados, como o que envolve um missionário e a sereia da qual precisam extrair uma lágrima.
Sim, as sereias. Talvez seja a melhor sequência do filme a que tentam capturá-las. Tem um movimento interessante da expectativa ao lindo seguido do assustador. Nada a gerar uma noite de insônia, porém chega a ser de fato a decupagem que mais distancia Navegando em Águas Misteriosas de um A Ilha da Garganta Cortada qualquer da vida. Pena Marshall derrapar feio algumas sequências depois, quando Barbossa conta a Jack como lhe tomaram o navio Pérola Negra. Cada frase dita por Geoffrey Rush é reproduzida pela sonoplastia, como nas novelas de rádio, sem surtir um bom efeito estético. Ao contrário, o clima da cena se perde completamente e ela fica patética e infantil. Passado o trauma, o terceiro ato valoriza o romance entre o humano e a sereia junto com a extração da lágrima. Posso estar ficando velho e chato, mas não cola. Na inorganicidade do roteiro, soa como um recurso escolhido num jogo de porrinha. Se ao menos tivessem desenvolvido essa relação com um olhar mais atento. Da forma como ficou, a lágrima da sereia não comove, só deixa tudo mais bobo. Para quem, como eu, sentiu o espírito de Indiana Jones sendo roubado pelos piratas, vai consolidar essa impressão na parte da tal Fonte da Juventude. Até a morte do sujeito que bebe no cálice errado parece uma fotocópia ruim da filmada por Spielberg em 1989. É o estado da arte. Apenas se esqueceram de atualizar as referências.
Em seguida, Penélope Cruz e seu inglês tropeçado conferem movimento à trama, ainda que na encheção de linguiça em sequências longas e já saturadas do casal discutindo a relação enquanto enfrentam soldados do rei e demais obstáculos do roteiro da dupla Ted Elliott e Terry Rossio. Cruz demonstra saber lidar com o timing cômico, e até a fotografia de Dariusz Wolski lhe confere simpatia. Contudo, seu personagem se afunda na caricatura da mulher ardilosa pela qual todo homem bonzinho é enganado e desenganado ao mesmo tempo. Sobra para o protagonista entrar no jogo e usá-lo ao seu favor. Felizmente, Jack Sparrow é um daqueles personagens tão bem sacados que supera as embolias do fiapo de enredo. Do livro de Powers, publicado em 1987, permaneceram Barba Negra (Ian McShane) e seu Queen Anne’s Revenge tripulado por zumbis, além da Fonte da Juventude como leitmotiv da narrativa. Ademais, segundo o próprio autor, seu Jack Shandy em nada tem a ver com o pirata da série do produtor Jerry Bruckheimer.
Que a priori não lhe confere um reboot, mas prossegue as aventuras caribenhas sem os personagens de Orlando Bloom e Keira Knight. Um pensamento lógico até: de todos, Sparrow é o único que justificaria um spin-off. E Depp continua (se) divertindo na pele tresloucada de Jack, mesmo não acrescentando nem frescor nem nostalgia ao seu papel mais popular. Talvez Piratas do Caribe devesse ter demorado um pouco mais para ser retomado, daria outra áurea à diversão proporcionada. Seja como for, aqui é preciso engolir um Rob Marshall (Chicago, Nine) dirigindo sem qualquer personalidade ou criatividade no uso do 3D, coreografando as peripécias de seus atores como se estivessem nos brinquedos da Disneyworld ou no Maratoma do Faustão. Sua indulgência deixa o roteiro ir jogando coisas para esticar a história ao máximo. Nisso, o percurso do Queen Anne’s Revenge e seus concorrentes absorve todos os tipos de gags e desvios narrativos permitidos pelo bom senso, desde enfrentar motins temporários a antecipar estupidamente o destino de certos personagens, passando por romances forçados, como o que envolve um missionário e a sereia da qual precisam extrair uma lágrima.
Sim, as sereias. Talvez seja a melhor sequência do filme a que tentam capturá-las. Tem um movimento interessante da expectativa ao lindo seguido do assustador. Nada a gerar uma noite de insônia, porém chega a ser de fato a decupagem que mais distancia Navegando em Águas Misteriosas de um A Ilha da Garganta Cortada qualquer da vida. Pena Marshall derrapar feio algumas sequências depois, quando Barbossa conta a Jack como lhe tomaram o navio Pérola Negra. Cada frase dita por Geoffrey Rush é reproduzida pela sonoplastia, como nas novelas de rádio, sem surtir um bom efeito estético. Ao contrário, o clima da cena se perde completamente e ela fica patética e infantil. Passado o trauma, o terceiro ato valoriza o romance entre o humano e a sereia junto com a extração da lágrima. Posso estar ficando velho e chato, mas não cola. Na inorganicidade do roteiro, soa como um recurso escolhido num jogo de porrinha. Se ao menos tivessem desenvolvido essa relação com um olhar mais atento. Da forma como ficou, a lágrima da sereia não comove, só deixa tudo mais bobo. Para quem, como eu, sentiu o espírito de Indiana Jones sendo roubado pelos piratas, vai consolidar essa impressão na parte da tal Fonte da Juventude. Até a morte do sujeito que bebe no cálice errado parece uma fotocópia ruim da filmada por Spielberg em 1989. É o estado da arte. Apenas se esqueceram de atualizar as referências.
23 de maio de 2011
00h07
Publicado no jornal O Dia em 24 de maio de 201
00h07
Publicado no jornal O Dia em 24 de maio de 201
Quem tem medo do lobo mau?
Já fazia parte das conversas dos adultos com detalhes e conotações sexuais muito antes do francês Charles Perrault popularizar o conto da Chapeuzinho Vermelho para o público infantil em “Contos da Mamãe Ganso” (1697). Desde então, a história da menina ingênua indo à casa da avó sob o olhar malicioso do Lobo Mau sofreu infinitas releituras, dos irmãos Grimm, passando por Hans Christian Andersen, tido como o pai da literatura infanto-juvenil, e não escapando até mesmo do humor seco de Dalton Trevisan. O grande Guimarães Rosa escreveu sua própria versão para adolescentes com o título “Fita Verde no Cabelo”, Chico Buarque fez a paródia “Chapeuzinho Amarelo” e a formidável Hilda Hilst ousou pôr a menina como cafetina do Lobo em “A Chapéu”. Contudo, nada – repito, nada – pode preparar alguém para a versão cinematográfica A Garota da Capa Vermelha, dirigida por Catherine Hardwicke.
Sim, a mesma Catherine Hardwicke que contribuiu para o retrocesso brutal do subgênero vampiresco com sua insossa adaptação de Crepúsculo, em 2008, e todo aquele subtexto mórmon da abstinência sexual entre os adolescentes (paradoxalmente instigando o contrário pela mise-en-scène). Tremo só de lembrar. O estarrecedor é ser a mesma Catherine Hardwicke que pareceu compreender a juventude de nosso tempo em seu filme de estreia, Aos Treze. Pior: exatamente a mesma cineasta a conceber uma pérola como Os Reis de Dogtown, sobre a febre do skateboarding, abordando também com olhar humanista a juventude suburbana de seu país na década de 70. Ao migrar para produções com maior apelo de público, Hardwicke perdeu a mão, o toque, o talento de realizadora. E agora oferece outro péssimo exemplo tanto de narrativa quanto ao fato de ser mulher, jovem e bonita, dominada pelos hormônios da impulsividade.
Não espere ver Chapeuzinho Vermelho (aqui Valerie, feita pela quase sempre mal usada Amanda Seyfried e seu olhar de pidona) correndo do Lobo Mau, e sim chamando por ele, desejando-o. Logo no início, fica claro que a menina inocente do conto de fadas já era, dando lugar a uma jovem passional noiva de um e apaixonada por outro, ao qual se entrega sem qualquer hesitação. O roteiro de David Johnson estabelece de imediato o clima do vilarejo atormento por um lobisomem que possui um pacto com os habitantes – e isso o roteirista não se preocupa em explicar. Mas até que nisso não há problema. Não comparado aos diálogos tronchos que somos obrigados a ouvir e sem nenhum respeito pelo próprio contexto dos personagens. No velório da vítima a motivar a trama, a preocupação maior é com o suposto casamento de Valerie. Seria menos chocante se a jovem repousada no caixão não fosse irmã dela? Ou se a próxima vítima não fosse tão óbvia a revelar, já na meia hora inicial, a enorme fragilidade do enredo?
Enredo esse bobo e sem graça, pondo a protagonista focada em sua paixão enquanto as pessoas morrem à sua volta. E de repente, o sono do espectador é espantado pelo repeteco de vê-la dividida entre dois, não, três, pois ela também se conecta com a criatura. Entra em cena o tédio de se adivinhar com acerto cada próximo passo da história, assim como Gary Oldman pagando mico como o padre Solomon. Chega a ser patética a tentativa de Hardwicke de uma direção com pegada pop na câmera vertiginosa a apresentar o personagem de Oldman, exagerado, caricato, com uma retórica sem criatividade, conduzindo-o a um desfecho terrivelmente fraco de coadjuvante de luxo sem grande importância. Falando em câmera e imagem, o cenário se revela fake em alguns momentos (muita névoa aqui, uma iluminação mal posicionada ali), refletindo a indulgência da produção. As sequências de ação nunca passam da mornança e os efeitos digitais estão longe de impressionar uma criança. O Lobo falando por telepatia com a atônita Valerie é o fim da picada.
Sem falar na mania de cineastas preguiçosos em insistir nas pistas falsas, quando esse recurso já não comove o espectador. Que ainda precisa aturar o cúmulo de presenciar o famoso diálogo entre Chapeuzinho e a Vovozinha (quando sabemos ser o Lobo disfarçado dela) numa cena risível, chegando a ser triste ver uma veterana como Julie Christie em tal situação, e de forçadíssimo contexto dramático. Certo, conduz ao ato final, à ridícula revelação do lobisomem e ao seu discurso explicando os acontecimentos, numa encenação patética. E aí Hardwicke promove o coito profano que não se concretizou em Crepúsculo. Valerie se consagra como a mocinha pós-moderna que prefere o bad boy, o flerte com o perigo de ter sua própria natureza humana possuída e transformada. Sem isso, qual seria a graça de ser jovem, bela e sexualmente bem resolvida? A Garota da Capa Vermelha (a cor e sua conotação terminam se reconfigurando de inocência para malícia) pode até manter a jornada interna dos contos de fadas – travessia, encontro, conquista e celebração –, mas desvirtuando-a, numa trama sacal e mal elaborada, em prol de uma audiência feminina com os anseios comuns à época do vazio. A moral da história já não põe as crianças para dormir com a luz do quarto acesa e o Lobo Mau causa muito mais atração do que medo.
Sim, a mesma Catherine Hardwicke que contribuiu para o retrocesso brutal do subgênero vampiresco com sua insossa adaptação de Crepúsculo, em 2008, e todo aquele subtexto mórmon da abstinência sexual entre os adolescentes (paradoxalmente instigando o contrário pela mise-en-scène). Tremo só de lembrar. O estarrecedor é ser a mesma Catherine Hardwicke que pareceu compreender a juventude de nosso tempo em seu filme de estreia, Aos Treze. Pior: exatamente a mesma cineasta a conceber uma pérola como Os Reis de Dogtown, sobre a febre do skateboarding, abordando também com olhar humanista a juventude suburbana de seu país na década de 70. Ao migrar para produções com maior apelo de público, Hardwicke perdeu a mão, o toque, o talento de realizadora. E agora oferece outro péssimo exemplo tanto de narrativa quanto ao fato de ser mulher, jovem e bonita, dominada pelos hormônios da impulsividade.
Não espere ver Chapeuzinho Vermelho (aqui Valerie, feita pela quase sempre mal usada Amanda Seyfried e seu olhar de pidona) correndo do Lobo Mau, e sim chamando por ele, desejando-o. Logo no início, fica claro que a menina inocente do conto de fadas já era, dando lugar a uma jovem passional noiva de um e apaixonada por outro, ao qual se entrega sem qualquer hesitação. O roteiro de David Johnson estabelece de imediato o clima do vilarejo atormento por um lobisomem que possui um pacto com os habitantes – e isso o roteirista não se preocupa em explicar. Mas até que nisso não há problema. Não comparado aos diálogos tronchos que somos obrigados a ouvir e sem nenhum respeito pelo próprio contexto dos personagens. No velório da vítima a motivar a trama, a preocupação maior é com o suposto casamento de Valerie. Seria menos chocante se a jovem repousada no caixão não fosse irmã dela? Ou se a próxima vítima não fosse tão óbvia a revelar, já na meia hora inicial, a enorme fragilidade do enredo?
Enredo esse bobo e sem graça, pondo a protagonista focada em sua paixão enquanto as pessoas morrem à sua volta. E de repente, o sono do espectador é espantado pelo repeteco de vê-la dividida entre dois, não, três, pois ela também se conecta com a criatura. Entra em cena o tédio de se adivinhar com acerto cada próximo passo da história, assim como Gary Oldman pagando mico como o padre Solomon. Chega a ser patética a tentativa de Hardwicke de uma direção com pegada pop na câmera vertiginosa a apresentar o personagem de Oldman, exagerado, caricato, com uma retórica sem criatividade, conduzindo-o a um desfecho terrivelmente fraco de coadjuvante de luxo sem grande importância. Falando em câmera e imagem, o cenário se revela fake em alguns momentos (muita névoa aqui, uma iluminação mal posicionada ali), refletindo a indulgência da produção. As sequências de ação nunca passam da mornança e os efeitos digitais estão longe de impressionar uma criança. O Lobo falando por telepatia com a atônita Valerie é o fim da picada.
Sem falar na mania de cineastas preguiçosos em insistir nas pistas falsas, quando esse recurso já não comove o espectador. Que ainda precisa aturar o cúmulo de presenciar o famoso diálogo entre Chapeuzinho e a Vovozinha (quando sabemos ser o Lobo disfarçado dela) numa cena risível, chegando a ser triste ver uma veterana como Julie Christie em tal situação, e de forçadíssimo contexto dramático. Certo, conduz ao ato final, à ridícula revelação do lobisomem e ao seu discurso explicando os acontecimentos, numa encenação patética. E aí Hardwicke promove o coito profano que não se concretizou em Crepúsculo. Valerie se consagra como a mocinha pós-moderna que prefere o bad boy, o flerte com o perigo de ter sua própria natureza humana possuída e transformada. Sem isso, qual seria a graça de ser jovem, bela e sexualmente bem resolvida? A Garota da Capa Vermelha (a cor e sua conotação terminam se reconfigurando de inocência para malícia) pode até manter a jornada interna dos contos de fadas – travessia, encontro, conquista e celebração –, mas desvirtuando-a, numa trama sacal e mal elaborada, em prol de uma audiência feminina com os anseios comuns à época do vazio. A moral da história já não põe as crianças para dormir com a luz do quarto acesa e o Lobo Mau causa muito mais atração do que medo.
Teresina, 8 de maio de 2011
15h15
Publicado no jornal O Dia em 10 de maio de 2011
15h15
Publicado no jornal O Dia em 10 de maio de 2011
Uma cruz tatuada na testa
(17/05/2011, às 08:17:19)
Em apenas quinze minutos de projeção, é dito tudo o que você precisa saber sobre Padre, vendido como um terror de ação extraído de uma graphic novel bem sucedida. Até aí, nenhum problema aparente. Há duas maneiras manjadas de se contar uma história: ou o realizador a fragmenta jogando as respostas (ou as perguntas) para o desfecho-clímax ou joga limpo com o espectador logo no início e se apoia na força da narrativa para segura-lá até a última cena. Tirando as variações, todas as obras são estruturadas na bifurcação desses dois modos de proceder. Não existe, cartesianamente falando, uma maneira melhor que a outra; tudo depende do argumento a ser desenvolvido, assim como da própria segurança do escritor/cineasta na condução de um trem desgovernado. Justamente nesse ponto, o filme dirigido por Scott Stewart escancara sua fragilidade.E essa não é a primeira vez. Stewart fez a mesma coisa em Legião (2009), sua estreia na direção de longas-metragens após ganhar prestígio trabalhando com efeitos especiais. Mas quem pode dizer quando o sujeito está maduro o suficiente para reinventar a própria carreira? Ninguém, a não ser ele mesmo e sua persistência em seguir os sonhos. Para esse último caso não tem maturidade a segurar o ímpeto de uma boa oportunidade. Pena Scott Stewart (ainda) não fazer jus à persistência de ser um maquinista cinematográfico, pois acredito nos sonhos e nas boas intenções. Se no primeiro filme, a arrancada sem estancar conduz a um desenvolvimento fraco, o mesmo acontece em Padre, com a diferença do arranque já vir cheio de hesitações. Os primeiros cinco minutos são cruciais para ditar o tom de qualquer filme. Contudo, a acústica aqui não reverbera harmonicamente.
Baseada no manhwa (como é chamado o quadrinho coreano) de Min-Woo Hyungo lançado em 2006, a história segue a guerra entre humanos e vampiros, nada bonzinhos ou bonitinhos como os da última safra. A igreja, entidade máxima e autoritária desse universo, recruta pessoas com talentos especiais para aniquilar as terríveis criaturas em nome de Deus. Tudo isso representado por uma violenta animação no começo do filme que tenta remeter ao estilo dos manhwas. Com a vitória da cruzada sacerdotal, esses padres-guerreiros são dispensados de seus serviços, passando a viver no anonimato. O visual das cidades bebe na fonte de um Blade Runner da vida para mostrar uma sociedade saída direto da distopia de George Orwell, 1984, com a igreja tomando o lugar do Estado controlador das vontades e dos desejos individuais. Esse viés poderia ter sido mais explorado, não fosse a ansiedade do roteiro assinado por um certo Cory Goodman de ir logo ao que interessa.
No caso, o rapto de uma pessoa próxima ao Padre do título, personagem de Paul Bettany (ou sortudo sr. Jennifer Connelly para os íntimos e invejosos), por um grupo de vampiros livres do cerco da igreja. Para matar dois coelhos com uma só paulada – ir ao resgate da jovem raptada e sentir novamente a adrenalina do combate –, o protagonista precisa desobedecer seus monsenhores, juntamente com o mantra imposto “Ir contra a igreja é ir contra Deus”. Com a ajuda de um xerife e de uma Priestess, uma sacerdotisa, ele parte numa caçada atravessando cenários do Velho Oeste, uma das poucas influências diretas dos quadrinhos de Hyungo. No percurso, o trio encara tanto vampiros, que mais parecem trolls gosmentos, quanto Familiares, humanos transformados e escravizados. Mas a história converge sempre para resoluções rápidas e simplistas, com os seus segredos revelados, ou deduzidos, nos primeiros quinze minutos. Ao espectador, o que resta é torcer para, pelo menos, os efeitos compensarem e pregarem bons sustos.
Nem isso Padre consegue. A direção sem personalidade de Stewart segue tanto à risca o esquema “falso susto seguido do susto verdadeiro” a ponto de nenhum susto de fato acontecer. Sem falar nas sequências de ação, nas quais ele padroniza o estilo John Woo de dar sempre um slow motion no momento mais dramático, seja em terra ou no ar. Termina por soar repetitivo, e assim nenhum suspiro sai da plateia. O fôlego trôpego da narrativa, em quase nada igual a dos quadrinhos, parece inversamente proporcional à sua curta duração (o filme não chega aos 90 minutos), e muitas situações se resolvem sem impacto algum sobre nós, pobres espectadores da mediocridade evoluída e embalada para presente. Isso quando elas não são sumariamente abandonadas, como o personagem de Brad Dourif, que prometia render mais, até pela escalação do ator. Triste é ver alguém pagar as contas fazendo figuração de luxo. Mais triste ainda é perceber uma obra correr para fora dos trilhos como se quisesse chegar logo ao final. Nas mãos de outro diretor (Andrew Douglas, de Horror em Amityville, esteve envolvido em 2006), quem sabe Padre chegasse a ser assustador como era prometido. Scott Stewart apenas estetiza a timidez do recorte feito no personagem criado por Min-Woo Hyungo: do padre com a alma vendida ao demônio para empreender sua vingança contra um anjo caído, sobrou-nos o jedi sem carisma com uma cruz tatuada na testa.
Teresina, 15 de maio de 2011
13h40
Publicado no jornal O Dia em 17 de maio de 2011
13h40
Publicado no jornal O Dia em 17 de maio de 2011
“A boa crítica é aquela que consegue dialogar com diferentes públicos.”
Por Monteiro Júnior
Marden Machado é, por criação, piauiense do ovo estalado pela fervura do asfalto, mas vive em Curitiba há décadas. Jornalista de formação, exerce com paixão e conhecimento de causa a prática, muitas vezes não compreendida, da crítica de cinema. Estudioso da sétima arte, comenta filmes em três instâncias da mídia: rádio, TV e internet, na qual escreve quase diariamente sobre os filmes que assiste. De volta ao berço teresinense para proferir uma palestra sobre cinema e contracultura [ocorrida na sexta-feira, 1 de abril, às 19h no auditório Parnaíba], dentro da programação do Artes de Março, Marden concebeu uma esclarecedora entrevista acerca de como a crítica é a principal catalisadora do debate e da construção de uma cinematografia antenada com a atual geração de cinéfilos. Além disso, deixa claro: não é um cineasta frustrado.Como é a rotina de um crítico de cinema, de alguém que escreve sobre filmes quase todos os dias? Você tem horários para ver e escrever sobre um filme ou não?
A principal rotina, em primeiro lugar, é ver e rever filmes. Em complemento, ler livros sobre cinema em geral e, finalizando, conversar sobre o assunto com outras pessoas. Em casa, costumo ver meus filmes todos os dias, cedo da manhã. Acompanho também as cabines de imprensa, que geralmente são realizadas no início da semana (terças e quartas), por volta das 10h. Para escrever, meu processo segue uma rotina diferente. Na maioria das vezes escrevo no período da noite, depois de passar o dia pensando no que vou escrever. Só consigo escrever quando tenho o texto todo na cabeça.
A prática da crítica de cinema nunca foi algo realmente bem entendido pelo público em geral. E como sabemos, a crítica feita com seriedade e profissionalismo tem o poder de promover o debate acerca da própria cinematografia. Sendo você jornalista e crítico, sente essa falta de uma compreensão maior sobre a prática da crítica cinematográfica?
Existe aquela velha lenda que diz: se a crítica gostou é porque o filme é ruim e vice-versa. Vejo a crítica, seja ela qual for, como algo extremamente importante. Em especial, nos dias de hoje quando somos bombardeados continuamente com milhares e milhares de informações. A boa crítica pode funcionar como um filtro, um guia, um fomentador de debates. No meu caso específico, que trabalho mais com o rádio, a relação que criei com os ouvintes é bem amistosa. O texto escrito costuma ter uma percepção diferente. Sinto isso em relação ao que publico em meu blog. Já na televisão, a relação que se estabelece é mais respeitosa e quase de admiração. É bastante curioso perceber reações distintas muitas vezes relativas ao mesmo filme comentado em diferentes meios.
Woody Allen brinca dizendo que “quem não sabe fazer, ensina”. Há no imaginário popular essa questão de que todo crítico de cinema no fundo é um cineasta frustrado. Como você começou a assumir a prática da crítica como caminho a seguir profissionalmente?
Até onde eu consigo lembrar, sempre gostei de cinema. Por volta dos 14 anos, comecei a me interessar mais profundamente pelo assunto e passei a comprar e ler livros sobre a sétima arte. Como todo jovem apaixonado pelas imagens em movimento, fui cineclubista. Tive a oportunidade de ver filmes marcantes de Truffaut, Bergman, Kurosawa, Fellini, Glauber, Buñuel, Godard, Visconti e muitos outros diretores fundamentais nas sessões do cineclube do Diocesano, nas mostras especiais promovidas no auditório Herbert Parente e na sessão de arte do Royal. Aliado a isso, não descuidei dos filmes mais populares, que via religiosamente tanto no Royal como no Rex. Adoro Woody Allen, mas, não concordo com a frase dele. Vejo a crítica como peça fundamental para o entendimento do cinema como arte e o olhar de quem faz é sempre diferente do olhar de quem ver. Eu, pelo menos, se algum dia tiver que trabalhar diretamente com cinema, será como roteirista ou produtor. Tenho plena consciência que não possuo talento para dirigir um filme e não sou frustrado por isso.
Também temos críticos que viraram ótimos realizadores, como o pessoal da “Cahiers du Cinéma” e vários outros. Existe algum diferencial entre críticos que se enveredaram por trás das câmeras e cineastas que se dedicaram desde o início ao fazer cinema?
A turma da Cahiers du Cinéma, Glauber Rocha e Martin Scorsese são as exceções da regra. Não creio que existam diferenças significativas. O crítico talvez tenha um conhecimento teórico e histórico maior. Porém, o que sempre prevalece é o olhar do cineasta, a emoção que provoca e transmite com as imagens. E isso, muitas vezes, não tem explicação lógica. É uma questão de sentimento.
Muitos leitores leem uma crítica e comentam não precisarem mais ir assistir ao filme ou então indagam qual seu filme favorito. A acadêmica Kristin Thompson escreveu recentemente um artigo no qual conclui que isso se deve ao pouco reconhecimento das pessoas em relação ao cinema como expressão artística. Como a crítica de cinema pode servir para o amadurecimento do público geral ao modo como encara ir a uma sessão de cinema?
Defendo que a boa crítica é aquela que consegue dialogar com diferentes públicos. Ela precisa ser simples e nunca simplória. Aí reside a grande dificuldade para se escrever um texto crítico. A diferença de conhecimentos sobre o assunto entre quem escreve e quem lê não deve ser um empecilho jamais. Um bom texto de opinião será entendido, provocará a curiosidade e estimulará o debate. Não importando a bagagem cultural de quem o lê.
A boa crítica, aquela de prospecção, de pesquisa e reflexão, parece está perdendo lugar para análises rasteiras com mais subjetivismo do que embasamento teórico. A proliferação dos blogs tornou todo mundo um crítico de cinema, por assim dizer. Como podemos diferenciar uma boa crítica, que serve ao seu propósito, de um diletante querendo compartilhar suas opiniões?
Vejo como extremamente saudável essa grande movimentação de opiniões nos blogs e nas redes sociais. O tempo cuidará de corrigir os excessos e as bobagens publicadas. A seleção natural funciona aqui também. As pessoas gostam e querem ouvir e ler opiniões inteligentes, firmes e coerentes. Quem não se enquadrar nesse perfil ficará no limbo.
Quais foram, ou são, suas influências quando começou a escrever sobre cinema? Teve algum crítico(a) ou texto que lhe deu o estalo: “é isso o que eu quero fazer”?
Quando comecei a me interessar seriamente por assuntos ligados ao cinema, eu lia tudo que encontrava pela frente e não parava de falar sobre isso com meus amigos. Um deles, o Ramsés Ramos, era meu colega de sala no colégio e participava do mesmo cineclube que eu frequentava. Era com ele e com meu irmão Douglas que eu mais conversava sobre cinema. Eu nunca imaginei que fosse escrever sobre isso. Até que, quando eu tinha 19 anos, aceitei um desafio feito pelo Kenard Kruel. Na época, ele era editor do caderno de cultura do Jornal da Manhã. Eu estava na gráfica do pai do Ramsés falando de maneira apaixonada sobre o filme “O Império Contra-Ataca”. Kenard gostou do que ouviu e me perguntou se eu não toparia escrever o que eu tinha acabado de falar. Se eu fizesse isso, ele publicaria na edição de domingo do jornal. Aceitei o desafio e não parei mais. Gostava muito dos textos da Ana Maria Bahiana, do Luiz Nazário, do Paulo Perdigão e do Edmar Pereira.
O que você acha da crítica de cinema feita atualmente no Brasil? Quem você destacaria como realizando um trabalho sério na promoção do debate e na construção de uma cinematografia nacional?
Como em todas as formas de expressão artística, com o cinema não seria diferente, existe muito “gillette press” e muito material produzido por assessorias que são reproduzidos sem critério e sem opinião alguma. Uma boa parte das “críticas” fica atrelada ao custo e ao faturamento do filme, fofocas de bastidores e coisas do gênero. Tudo muito superficial. Prefiro textos que me provoquem. Gosto do estilo compulsivo e apaixonado do Luiz Carlos Merten, do Estadão. Aprecio bastante as opiniões do Inácio Araújo, da Folha. Acompanho também o Pablo Villaça, do site Cinema em Cena. Em Curitiba, na Gazeta do Povo, leio sempre os textos do Paulo Camargo e no Rio, os do Rodrigo Fonseca, de O Globo.
Você tem um irmão cineasta, Douglas Machado. Esta deve ser uma pergunta batida, mas na condição de crítico e irmão você emite suas verdadeiras opiniões sobre o trabalho dele ou é sempre algo delicado assistir ao filme de um parente?
O Douglas é quem deveria responder essa pergunta... Antes de qualquer coisa quero deixar bem claro que existem hoje no Brasil três grandes cineastas trabalhando com documentários: Eduardo Coutinho, João Moreira Salles e Douglas Machado. Sempre que meu irmão inicia um novo trabalho, eu costumo acompanhar sua realização desde o começo, desde o primeiro esboço de roteiro. O Douglas não é apenas meu irmão, ele é também meu melhor amigo. Mas isso nunca foi motivo para que eu deixasse de emitir minhas reais impressões sobre os trabalhos que ele realiza. Pelo contrário. Nós conversamos diariamente e ele sabe que tem em mim uma pessoa que, por conhecê-lo bem, apontará com sinceridade seus erros e acertos.
29 de março de 2011
10h06
Publicado no jornal O Dia, caderno Metrópole, em 1 de abril de 2011
10h06
Publicado no jornal O Dia, caderno Metrópole, em 1 de abril de 2011
En la Ciudade
Ficha:
Idem, ESP, 2003Dir. Cesc Gay
Com: Mónica López, Eduard Fernández, María Pujalte, Alex Brendemühl, Vincenta N’Dongo
110 min
Drama
Visto em 19.03.06 (Cinemax – madrugada de sábado em casa)
Cotação: * * *
Antes de qualquer coisa, é preciso esclarecer dois pontos acerca do filme Bruna Surfistinha, atualmente em cartaz: nem de longe retrata o submundo da prostituição brasileira e tampouco explica os motivos a levarem a então adolescente Raquel Pacheco fugir de uma família paulistana de classe média e decidir, como quem escolhe um curso para prestar vestibular, se prostituir na “zona quente” da cidade. Sabemos, por meio de seu livro O Doce Veneno do Escorpião, publicado há alguns anos, e de um único diálogo na adaptação cinematográfica, que ela foi adotada e os pais eram distantes. Porém, não é justificativa para uma mudança tão radical de vida. Da mesma forma, o enredo concentra seu recorte na prostituição de luxo, ou seja, outro nível da realidade, na qual tudo é uma festa regada a muito sexo, drogas e boates. Dito isso, podemos passar aos méritos e deméritos da obra dirigida por Marcus Baldini.
Em três ocasiões, a personagem feita com desprendimento por Deborah Secco dialoga diretamente com a câmera. A primeira é logo na abertura, quando ela ensaia um desastroso streaptease (nem chega a tanto, aliás) diante da webcam enquanto correm os créditos principais e a batida “Time of the Season” da banda The Zombies força o clima. À parte qualquer preocupação com esse início assumidamente brega, Baldini já nos causa desconforto ao revelar, assim de cara, nossa condição de vouyers da trajetória picante de Bruna Surfistinha, e ao final isso se sai como uma decisão inteligente – ainda que um tanto óbvia, pelo tema abordado. Como é comum na pós-modernidade, a narrativa entrecorta passado e presente para mostrar o fim da vida escolar de Raquel, pela qual parece se ressentir por nunca ter sido popular, e o início da escalada de Bruna, que por não ter cara de garota de programa imediatamente se torna a favorita dos clientes. Nessa nova escola, a popularidade lhe encontra como a realização de um sonho encubado.
O que nos leva ao segundo momento olho no olho entre espectador e personagem, num dos planos mais interessantes dessa safra do cinema nacional: enquanto é sodomizada pelo primeiro cliente, Deborah/Raquel/Bruna encara a lente da câmera. Na verdade, ela está olhando para cada um de nós, quebrando de imediato a quarta parede para podermos compartilhar juntos aquele cruel rito de passagem. A cena se torna forte mais pelo fato dela nos tirar da passividade enquanto espectadores, tal qual postulou Bertolt Brecht, do que Cássio Gabus Mendes a possuindo feito um animal. Trata-se de uma dupla despedida: enquanto Bruna se despede de Raquel, Deborah Secco se distancia da atriz acomodada das novelas globais. Pelo menos dá o primeiro passo. A sequência disso é um colírio para qualquer marmanjo e/ou casal, e a atriz acerta ao apostar em cenas de sexo fortes, numa exposição ousada. Está mais para uma homenagem, digamos assim, à pornochanchada do que para algo vulgar ou depreciativo. O toque humorístico de Baldini torna tudo digerível para os mais moralistas, uma das várias concessões narrativas visando um bom desempenho comercial.
E são esses os mais incomodados com a maneira do filme retratar a prostituição, deixando de lado a melancolia desse estilo de vida (obviamente, aqui e acolá pontuam-se as dificuldades) para investir num olhar otimista (posso dizer?) dessas meninas ganhando dinheiro fazendo sexo. O elenco de apoio é ótimo, com destaque para Fabíula Nascimento e Cristina Lago, além de Drica Morais roubando suas cenas como a cafetina. A preparação de Sergio Penna ecoa no resultado final, acreditamos naquele grupo, choramos e rimos com ele, o que faz o filme crescer. Tal movimento prossegue na segunda parte, quando Bruna acrescenta Surfistinha ao nome de guerra e em pouco tempo se torna a garota de programa mais famosa de São Paulo, sobretudo ao resolver contar suas experiências num blog. Marcus Baldini, junto com o trio de roteiristas, utiliza uma boa sacada visual para mostrar o alcance do blog: os relatos de Bruna Surfistinha surgindo nas fachadas dos edifícios enquanto a protagonista caminha por entre eles. Ao menos tempo, dá a dica de como deve estar seu ego nesse momento.
Ego que conduz à parte mais óbvia de uma produção do gênero: a descida da personagem-título ao inferno. Tudo à sua volta, desde a direção de arte a Deborah completamente imersa em seu papel, reflete isso. Narrativamente, a virada soa forçada, como se buscasse logo o final e quisesse a todo custo recompensar aquela parcela moralista do público. Uma pena não alcançar um maior impacto, uma vez tendo algo de conto de fadas, realçado pelo personagem de Gabus Mendes, que o próprio Baldini não consegue destruir. Nesse ponto, a cleptomania de Raquel nem é mais lembrada, assim como várias coisas abandonadas ao longo do caminho. De todo modo, o filme, que parece dialogar com o norte-americano Confissões de uma Garota de Programa, dirigido por Soderbergh, e o espanhol Diário Proibido, também saído de um best seller confessional, consegue evitar um desfecho desastroso. Chegamos ao último plano e mais uma vez a protagonista está olhando para nós. Justamente quando temos permissão para entrar, a tela escurece e vamos ao término com “Fake Plastic Trees” do Radiohead. Pois já não somos os mesmos voyeurs. Nem Deborah Secco é a menina do começo do filme. No fim das contas, foi Marcus Baldini que completou seu arco enquanto narrador, usando a Surfistinha para falar de nós mesmos.
Teresina, 27 de fevereiro de 2011
17h18
Publicado no jornal O Dia em 1 de março de 2011
(Idem, GB/USA, 2005)
Dir. David Yates
Com: Bill Nighy, Kelly Macdonald
90 min – Drama – TV – Visto em 11.02.06 (HBO) (formatura do Marcão)
Possui duas vertentes maravilhosas: a relação intimista entre os personagens (lento, timming perfeito) e o lado político enfocando pela primeira vez a importância e o absurdo do G8 (oito pessoas decidindo o futuro da humanidade!), tudo devidamente encaixado contextualmente e bem amarrado pelo lindo texto de Richard Curtis (Quatro Casamentos e Um Funeral). É um romance para adultos e uma alegoria da atual situação política mundial, servindo inclusive de apelo para a consciência dos grandes líderes que literalmente fabricam numa sala de conferências o nosso amanhã. Contemplativo e melancólico, com atuações e direção soberbas, este tocante telefilme produzido pela HBO merece ser visto com atenção e, sobretudo, com o coração. Indicado a 2 Globos de Ouro (melhor ator em filme feito para TV e atriz).
(Enduring Love, GB, 2004)
Dir. Roger Michell
Com: Daniel Graig, Rhys Ifans, Samantha Morton, Bill Nighy
101 min – Drama – DVD – Visto em 25.02.06 (com Saulo e Amanda)
Um filme interessante, que após um início antológico e extremamente bem realizado (a cena do balão, brilhante, ganhou o prêmio Cena do Ano pelo Empire Awards, GB), nos engana por algum tempo de maneira esperta com a perspectiva de um desenvolvimento intrigante até nos revelar sobre o que realmente aborda a trama, sendo que o título faz o favor de nos entregar o que é. Mas não se engane, esta é uma fita muito bem construída pelo diretor Michell (de Um Lugar Chamado Nothing Hill), com ótimos diálogos e sacadas que não ofendem a nossa inteligência e mantêm o interesse até o final que peca por não ser surpreendente, tudo ajudado por um bom conjunto de atuações (Daniel Graig, o novo 007, foi considerado o melhor ator do ano pelo London Critics Circle Film Awards). Bom estudo sobre a obsessão. Vale uma conferida.
ENTRE DOIS AMORES * * * ½
(Out of Africa, EUA, 1985)
Dir. Sidney Pollack
Com: Meryl Streep, Robert Redford, Klaus Maria Brandauer, Michael Kitchen
160 min – Romance – DVD – Visto em 28.02.06
Sem dúvida, o grande filme de Sidney Pollack (Nosso Amor de Ontem), com produção luxuosa e narrativa longa e sem pressa (o romance só começa na metade do filme), baseado em história real. Acho que o título nacional simplifica muito a obra e realmente não sei até que ponto ele está correto (o original é Out of Africa), se a personagem principal fica mesmo entre dois amores e quem são eles, pois temos três possibilidades: o marido, Robert Redford e o amigo deste. Se bem que pode se referir a Redford e seu conflito entre amar ela e ter sua liberdade. Mas certamente tem a ver com o marido e Redford mesmo (o trailer sugere isso). Meryl Streep está muito bem, como sempre – falar dela é redundante, já que ela rouba todo filme que faz –, num filme muito bonito e extremamente bem realizado (Pollack ganhou o Oscar de direção, sendo que foram sete ao todo, incluindo filme e fotografia, arrebatadora, típica de David Lean, que inclusive já havia tentado fazer um filme sobre a personagem), mas um tanto superestimado na época. A trilha sonora de John Barry (Oscar, lógico) é a grande pérola deste longo romance que toca nossos corações, porém que não foge do convencional.
. Romance
. 109 min
. Este romance erótico do espanhol Julio Medem passa longe de fazer jus ao talento de quem concebeu obras cultuadas como Os Amantes do Círculo Polar e Lucía e o Sexo. A câmera quase não consegue disfarçar seu vouyerismo ao misturar sequências de sexo entre duas estranhas que se conhecem numa noite no quintal do papa e discussões acerca da História da Arte. Na verdade, trata-se de um remake lésbico do chileno En la Cama (Na Cama, aqui no Brasil), dirigido por Matías Bize em 2005, sobre conexão entre dois estranhos – Entre Lençóis, com Reynaldo Gianecchini, é uma tentativa atrapalhada desse subgênero. O interessante do roteiro de Medem são os jogos e as falsas mentiras dessas personagens para manter uma distância saudável de seus mundos reais e, assim, viver essa fantasia de uma noite apenas. Contudo, à medida que a madrugada avança, junto com uma aproximação mais delicada, vão-se revelando as camadas, sempre doloridas, de suas verdadeiras personalidades. O problema é que os assuntos são banais, batidos, e terminam soando, em sua maioria, desinteressantes. Como se a preocupação de Medem fosse outra. As atrizes Elena Anaya e Natasha Yarovenko estão particularmente desinibidas, literalmente passando o filme inteiro nuas, e a cena da flechada metafórica na banheira se destaca do resto, bem realizada. Pautado por inversões de expectativa, algumas óbvias, o roteiro caminha lentamente ao desfecho comum e melancólico, porém realista e sem nenhuma novidade ao subgênero de desconhecidos tendo um caso, seja qual for a configuração do casal da vez. No último momento, há uma reviravolta para deixar a história em aberto. Tarde demais, pois já estamos com esse irremediável sentimento de perda.
. Let Me In, EUA, 2010
. Terror
. 116 min
. Remake praticamente cena a cena do sueco Deixe Ela Entrar, de 2008, mas ainda tenso e melancólico com a boa direção de Matt Reeves. Na verdade, o realizador de Cloverfield – Monstro se empenha numa quase reconstituição do filme original escrito por John Ajvide Lindqvist, também autor do livro Lat den Rätte Komma In, sobre a amizade entre um garoto e uma menina vampira de doze anos... mais ou menos. É como se os norte-americanos tivessem apertado a tecla SAP; eu particularmente não vi nada de novo ou diferente em relação ao sueco, fora a localização geográfica, agora no Novo México, e o elenco. Aliás, o elenco mostra o quanto Reeves entende o processo de ter as pessoas certas em seus respectivos personagens. Desde Kodi Smit-McPhee (o Garoto de A Estrada) a Chloe Moretz como a vampira (ela é talentosíssima com apenas quatorze anos e caminha para ficar linda), passando por Richard Jenkins e Elias Koteas, como o guardião e o policial, respectivamente, todos caem como luvas em seus papéis, ajudando o espectador a imergir nesse conto de terror cheio de camadas e em certas partes aterrorizante. Prova de que a história é forte e interessante independente da língua. Todavia, muito boa a escolha de deixá-la transcorrer nos anos 80, nunca mostrar direito a mãe do garoto e toda a questão do bullying sofrido por ele na escola. Aliás, o mal nos seres humanos é terrível e injustificado aqui, saindo-se como um excelente contraponto para simpatizarmos com a menina e compreendermos o desfecho. Em meio à infantilidade dos vampiros-bobões da saga Crepúsculo, este Deixe-me Entrar é um verdadeiro oásis. Ainda que requentado.
. Sanctum, EUA/AUS, 2011
. Aventura
. 109 min
. Nem mesmo o 3D underwater salva o roteiro morno e afundado em clichês desta típica Sessão da Tarde do século XXI. James Cameron bancou o projeto dirigido por um tal de Alister Grierson e ele próprio fez questão de apresentar o trailer do filme como a mais nova revolução da experiência (importante lembrar isso: até agora é uma experiência) da terceira dimensão no cinema. Com a cara de pau, vendeu gato por lebre. Ainda que tenha conseguido mostrar que as câmeras 3D estão ficando mais leves e agora podem ser utilizadas em baixo d’água – em certos momentos, essa imersão é de fato interessante, dependendo da profundidade do campo e do rio, lagoa ou mar –, a tecnologia está longe de substituir os atributos humanos da narrativa. Inspirada numa história real, a trama carece de emoção e originalidade, sobrando personagens rasos e situações-clichês já vistas um milhão de vezes. O design da caverna foi claramente desenhado em virtude da exploração da profundidade de campo, mas quando há vários pontos diferentes de foco no campo alguns parecem artificiais. Um problema a ser resolvido, pois joga o espectador para fora do filme o tempo todo. A sensação de se estar submerso deve reter mais trabalho técnico de direção. Aqui se pode vislumbrar a potencialidade desse recurso, só que ainda está verde. A verdade? Cameron usou o trabalho de Grierson (diretor inexpressivo com um enredo fraco) para testar a tecnologia, ver como o público reage a ela e aprimorá-la para suas sequências de Avatar, cujos rumores indicam os oceanos de Pandora como os cenários. Se isso se confirmar, pode chamar a iniciativa de James Cameron com este Santuário de picaretagem. Das grossas.
. The Fighter, EUA, 2010)
. Drama
. 114 min
. Graças à qualidade das atuações, esta história inspirada em fatos verídicos cresce em humanismo e supera a própria estrutura tradicional de filmes de boxe. Contudo, é triste comprovar que a maioria das obras do gênero ainda não consegue conter o impulso de concluir em torno de uma luta importante e catártica, seja para o bem ou para o mal. Este O Vencedor não foge à regra, mesmo tendo plenas condições para tal. Pois é focado em seus personagens, nos seus dramas pessoais, e o tom semi-documental conferido pela câmera na mão de David O. Russell (especialista em comédias originais, como Três Reis e I ♥ Huckabees) acentua o realismo das performances. E que performances! Do limitado Mark Wahlberg (também produtor) a Amy Adams muito diferente da meiguice e inocência de seus papéis anteriores, todos brilham em absoluto. O conjunto de elenco é mesmo sensacional. Os destaques, obviamente, ficam por conta de Melissa Leo no papel mais difícil que é o da mãe dominadora e de Christian Bale como o irmão do protagonista, cheio de boas intenções, mas comprometido pelo vício em crack. Uma figura trágica e divertida, fácil de simpatizar. Bale sem dúvida rouba o filme e merece todo o reconhecimento. Pena as sequências das lutas serem fracas e sem criatividade. Scorsese, em Touro Indomável, ainda não foi superado. Sorte o filme de Russell ser concentrado nessa família disfuncional. E, acredite, ajeitar toda uma família se mostra uma tarefa mais árdua e excruciante do que vencer uma luta de boxe.
Em 11/02/2011
ZÉ COLMEIA – O FILME * *
. Yogi Bear, EUA, 2010
. Comédia
. 80 min
. A anos-luz do espírito do desenho, esta mistura de live action com CGI é divertida, porém boba e assumidamente infantil. A série animada durou de 1961 a 1988, configurando-se como uma das mais populares de sua geração. Infelizmente, o filme chega atrasado, pois nem os produtores souberam evocar o clima original. Aqui se sucede o mesmo processo de Scooby-Doo, personagens digitais com atores de carne e osso, com a diferença de ter sido rodado em 3D. Quanto ao uso da tecnologia, surpreende o fato do diretor Eric Brevig (que já havia ensaiado o formato com Viagem ao Centro da Terra, de 2008) explorar a profundidade de campo na composição das imagens, jogando o espectador para dentro delas, ainda que não consiga driblar o impulso de jogar coisas para fora da tela. A imersão é o grande barato do 3D, todos os elementos da imagem dialogando organicamente. É preciso que os realizadores, e o público, tomem consciência disso para não precisarmos esperar décadas para um amadurecimento da terceira dimensão no cinema. Fora isso, é curioso perceber que há mais química entre Zé Colmeia e Catatau, personagens digitais, do que entre o Guarda Smith e Rachel, personagens reais. Será isso algo sintomático neste entrelaçamento da narrativa humana com o estupor do alcance tecnológico? Fiquemos observando.
(Em 01/02/2011)
CINEMA-VOUYER
O ser humano é cheio de momentos pessoais e intransferíveis. Na verdade, todo o conceito de existência varia de um indivíduo a outro, as visões de mundo podem se assemelhar, mas nunca são exatamente iguais. A solidão de sensações e sentimentos é um atributo inerente à qualidade de estar vivo. Afinal, nascemos sós, morremos sós e entre essas duas coisas nos enganamos. Na angústia por quebrar essa barreira metafísica, buscamos compartilhar nossas reações junto a outras pessoas. Assim, rimos coletivamente, choramos no colo de alguém, amamos, desejamos, odiamos e fazemos planos, sempre observando, tentando sentir esse isolamento como sendo apenas mental.
Tal angústia acaba por ser a essência subliminar do cinema. Ao acompanhar o cotidiano de um personagem e expressar seu mundo interno, seja nas ações, nos diálogos ou nos devaneios narrativos, um filme busca extinguir a distância entre ele e o expectador. Torna ambos tão íntimos a ponto de, naqueles momentos de imersão total, se confundirem, virarem um só elemento de apreciação do mundo. Por ter um alcance massivo, a experiência pessoal é coletivizada, como toda arte do gênero, num paradoxo fascinante a revelar a magia de ser absorvido pela projeção da subjetividade alheia: enquanto o espectador se encontra em contato com essas imagens em movimento, ele não se sente só.
Nem mesmo quando o personagem sente uma dor e não tem a quem recorrer. No fundo, ele compreende que há milhões de pessoas vivenciando a mesma coisa do outro lado do ecrã. A intimidade passa a ser assistida, como nascer ou acordar, a alma é exposta voluntariamente, num nível menos perceptivo, e há esse breve instante de eternidade. A ilusão da plenitude holística levou os cineastas a usar a lente da câmera para enxergar além da ambivalência da imagem, além de sua dialética para criar sentidos dentro de um recorte da realidade. O cinema chegou a ir mais longe do que uma “investigação metafísica da condição humana”, tornou observável tudo o que, a priori, deveria ser particular. Nada escapa à objetiva, desde o êxtase do orgasmo sexual ao encontro de solidão intransferível com a morte.
Essa exposição de questões-tabus à câmera cinematográfica era vista como uma profanação, uma ferida dolorosa a exibir-se na tela, pelo crítico e fundador da revista Cahiers du Cinéma André Bazin. Se à época, sexo, morte e violência dirigida ao próprio olho lhe causavam desconforto, tento imaginar como Bazin sobreviveria hoje em dia, quando tais coisas aparecem em profusão em quase toda obra, sem falar naquelas que levam o grau de realismo a um patamar insuportável. A encenação do sexo é tão real que por meros detalhes técnicos, e sentimentais, não se configura como real, assim como a caracterização dos atores ao darem o último suspiro de vida. Isso sem mencionar o fato de que a última instância foi rompida: já é permitido à câmera acompanhar os personagens para dentro da morte, registrar com exclusividade o que espera cada um no além-vida.
Todavia, o choque maior de André Bazin seria perceber o quanto somos fascinados por esse vouyerismo transcendental proporcionado pela sétima arte, com um reforçozinho da televisão e de seus realities shows. Já não vamos mais ao cinema na procura de suprir nosso isolamento existencial vivenciando dramas e peripécias nas imagens à nossa frente, e sim de olhar por uma fechadura gigante uma realidade que não nos diz respeito, mas nos conforta por razões adversas. Na condição de expectador, quase tudo é excitante e divertido, de uma cena de amor soft porn ao ser humano se degradando perante a perversidade de certas mentes e tipos de relações. Vibramos com os vilões e seus raciocínios maldosos e geniais, enquanto enchemos a boca de pipoca diante da angústia da destruição de efeitos especiais perfeitos e da morte elaborada de algum personagem. Nesse cinema-vouyer, podemos expiar nossa própria morte sem morrermos de verdade.
Teresina, 30 de janeiro de 2011
16h15
Publicado no jornal O Dia em 1 de fevereiro de 2011
TEMPLE GRANDIN * * * ½
. Idem, EUA, 2010
. Drama
. 103 min
. Premiadíssimo e revigorante telefilme da HBO com uma personagem (real) que conseguiu reverter suas limitações em possibilidades. Diagnosticada como portadora de autismo desde 1950, quando tinha três anos, Temple Grandin superou toda e qualquer expectativa ao se graduar em psicologia e fazer mestrado em comportamento animal, destacando-se pelos artigos que escrevia e pela sua peculiar maneira de ver o mundo por meio de imagens. Hipersensível ao toque humano, inventou a máquina do abraço para suprir a carência em pessoas com a mesma característica. Notabilizou-se mundialmente pelo tratamento humanista dispensado ao gado por mecanismos de banho e abatimento menos agressivos. Neste belo telefilme dirigido por um especialista no formato, Mick Jackson, Temple Grandin ganha vida sob a extraordinária atuação de Claire Danes, a outrora Julieta na versão de Baz Luhrmann de 1996. Aqui ela é a alma do filme, num despenho notável que lhe valeu o Emmy e o Globo de Ouro, ocasião na qual pudemos ver a verdadeira Grandin. Um trabalho engrandecedor e até mais otimista do que Rain Man, com Dustin Hoffman. Procure ver.
. Drama
. 118 min
. Visto nos tempos atuais e sem nenhuma influência significativa, não chega a brilhar tanto quanto outros filmes sobre os bastidores de Hollywood. Mas é cativante e bem escrito, tendo conquistado o Oscar de Melhor Roteiro (Charles Schnee). Até mesmo porque quem faz cinema adora se ver na tela. Feito por um nome de grande prestígio na época, Vincente Minnelli, o filme vai e volta no tempo para contar a ascensão e decadência de um produtor de cinema (Kirk Douglas) sob três perspectivas: a de um diretor, a de uma aspirante à atriz alcoólatra e a de um escritor/roteirista. Ou seja, são três longos flashbacks fáceis de acompanhar, pois se sucedem em ordem cronológica, tornando o enredo episódico. Minnelli, seis anos antes de levar seu único Oscar (por Gigi), confere dinamismo a essa produção autorreferente, que diverte mostrando que em Hollywood pode-se subir fácil, contudo manter o auge requer sacrifícios pessoais e uma boa dose de mau-caratismo. O elenco é do peso de Lana Turner, Dick Powell, Walter Pidgeon, Barry Sullivan e Gloria Grahame, premiada como coadjuvante no papel da esposa displicente do escritor. Assim Estava Escrito ainda levou os Oscars de direção de arte, figurino e fotografia em preto e branco. Douglas foi indicado como melhor ator, tendo perdido, e com justiça, para Gary Cooper (Matar ou Morrer). Para quem gosta de filmes sobre filmes, vale uma espiada.
(em 30/01/2011)
. Young Frankenstein, EUA, 1974
. Comédia
. 106 min
. Esta sátira da trágica história de Mary Shelley escrita por Mel Brooks e Gene Wilder é uma pérola da boa comédia. Apesar de contido na anarquia, o humor é engraçado e inteligente em doses similares. Cheio de referências ao gênero que satiriza, sobretudo aos filmes de James Whale, possui gags realmente impagáveis (a da corcunda que muda de lado o tempo inteiro é um exemplo). Talvez seja um dos pontos mais altos da carreira de ambos, uma comédia de referência, nada comparada às bobagens feitas atualmente no cinema norte-americano. Uma joia de timing, tem até um Gene Hackman irreconhecível. Brooks tentou repetir o êxito com outro personagem da Universal 20 anos depois com “Drácula – Morto, Mas Feliz”, sem a mesma qualidade alcançada aqui.
(em 27/01/2011)
. O TURISTA - Resenha
. The Tourist, EUA, 2010
. Suspense
. 103 min
. Remake do francês Anthony Zimmer – A Caçada, de 2005, com roteiro tão bobo e preguiçoso quanto as atuações de Angelina Jolie e Johnny Depp. Saído do ótimo A Vida dos Outros, o alemão Florian Henckel von Donnersmarck (acredite, este não é o nome completo dele) estreia na direção de filmes norte-americanos com o pé esquerdo. Ao tentar remeter ao clima de obras como Ladrão de Casaca (1955), de Hitchcock, e Charada (1963), de Stanley Donner, produtos elegantes e genuínos do subgênero suspense romântico, Donnersmarck entrega um filme morno, sacal, mais preocupado em fotografar corretamente Veneza do que em contar uma história interessante. Quase metade da projeção é uma tentativa mal desempenhada de nos fazer acreditar num romance entre o abobalhado personagem de Depp e a fria Jolie. As quase inexistentes sequências de ação são na verdade gags forçadas que arruínam mais ainda a suposta diversão. O casal central escolheu um péssimo trabalho para finalmente contracenarem juntos. Infelizmente, porque ambos são ótimos atores. Mas não aqui, nesta sessão medíocre de tropeços, extremamente óbvia do início ao fim, mesmo para quem não assistiu ao original, um pouco melhor de ritmo. Nada de novo ou digno de nota. Descartável.
(em 25/01/11))
A DIFÍCIL ARTE DE CRESCER... EM FRENTE ÀS CÂMERAS
Definitivamente, não é fácil crescer e se tornar um adulto. Grande clichê para iniciar um artigo, devo reconhecer. Do tipo de ver seu corpo mudar, seus hormônios enlouquecerem, as espinhas arruinarem seu rosto, as primeiras paixões tornarem suas noites mais longas, o sexo acabar com a sua inocência, a pressão da maturidade dizer adeus à sua boa vida de tutelado. Fora todas as outras crises existenciais pelas quais todo mundo passa: ser feio ou bonito, gordo ou magro, inteligente ou burro, talentoso ou sem sorte. Se experimentar todas essas fases do desenvolvimento já é complicado tendo você só de lidar com seus pais e a escola, imagine como é para aqueles cujas vidas estão numa vitrine pela qual milhões passam, olham e comentam.
Sempre que me surpreendo quando um ator ou uma atriz se transforma em gente grande de repente (esse de repente deveria ser entre aspas, claro), penso em como deve ser delicado para ele/ela expor, às vezes de maneira visceral, sua metamorfose humana. Sobretudo no show business, no qual a imagem é um fator preponderante. Quantos atores-mirins carismáticos não conseguiram fazer essa transição da criança para o adulto e literalmente desapareceram do grande público? A lista é enorme. Por outro lado, têm aqueles que desassociaram sua persona do início de carreira e comprovaram um talento nato para o espetáculo da atuação mesmo depois de já saberem ir ao banheiro sozinhos. Felizmente, a lista desses também não é pequena.
Em qualquer um dos casos, há um fator comum: é sempre estranho e tortuoso fazer essa transição. O sujeito está assistindo ao seu corpo se modificar juntamente com outras milhões de pessoas, precisando ainda disfarçar alguma confusão mental a piolhar em sua cabeça. Obviamente, tamanha exposição e responsabilidade podem gerar um amadurecimento precoce, contudo isso nunca foi regra. Mas por que estou escrevendo sobre isso mesmo? Ah, lembrei! Por causa do estranhamento que senti ao assistir a The Runaways – Garotas do Rock, que traz Dakota Fanning menstruando logo na primeira cena para, durante as quase duas horas seguintes, mostrar que ela não é mais a filhinha esperta de Sean Penn em Uma Lição de Amor.
Não mesmo. No papel da vocalista da banda que dá nome ao filme, Cherie Currie, Dakota, com então quinze anos, beija e transa com homens e mulheres, protagoniza danças bem avançadinhas e posa só de calcinha e sutiã. O problema é ela não ter o sex appeal necessário para convencer no papel. Ainda é a menininha de Chamas da Vingança e Guerra dos Mundos, citando alguns de seus filmes mais conhecidos. Embora esforçada e talentosa, ela está na fase crítica de sua carreira, bem no olho do furacão. O mesmo que Haley Joel Osment (quem?) encarou em 2002/2003. Depois da participação desastrosa em Lições para Toda Vida, o garotinho que via gente morta em O Sexto Sentido passou a dublar games e fazer fitas B desconhecidas da grande maioria do público.
A maneira como Dakota vai se sobressair em seus próximos projetos definirá o caminho de sua carreira: o mesmo que jogou para fora da estrada nomes como Corey Feldman, Ralph Macchio, Mason Gamble, Jason James Ritcher, Jonathan Lipnicki e Macaulay Culkin ou o que cimentou o êxito continuado de Drew Barrymore, Elijah Wood, Christina Ricci, Reese Witherspoon, Kirsten Dunst e Christian Bale. Da minha parte, torço para ela encontrar um modo menos forçado de perpetuar seu talento sob os holofotes da fama e não despencar para o segundo escalão como o pessoal da primeira lista, hoje sobrevivendo da TV e de filmes menores. Na cruel batalha de Hollywood, nem todos conseguem ir dos cinco aos vinte anos com a (aparente) tranquilidade do elenco de Harry Potter. Até mesmo Rupert Grint, o desengonçado Ron Weasley, periga escapar. É como dizem: entre mortos e feridos, salvam-se os últimos.
Teresina, 23 de janeiro de 2011
22h58
Publicado no jornal O Dia em 25 de janeiro