terça-feira, 28 de agosto de 2012

A maldição da clavícula



É sempre mais escuro antes do amanhecer... Enoque não sabia o quanto, habilitação no bolso da calça jeans, cabelo esvoaçante ao vento, encima de uma moto. Agarrada às suas costas vinha a liberdade de andar sem capacete nas ruas do bairro mais ao sul de Teresina, os olhos vermelhos das duas grades de cerveja. Mal sabia ele que a maldição da velha adivinha o acompanhava em cada troca de marcha.

Enrique tinha visto primeiro. Era seu. mas o irmão mais velho, Enoque, não queria deixar o pequeno tomar a última dose de iogurte da geladeira. Naquela época, ainda brigavam por qualquer tolice. Enoque tinha sete anos; Enrique, quatro. Eram duas crianças que queriam demonstrar, em disputa, o amor dos pais. Excepcionalmente àquele dia, as crianças estavam sozinhas: mamãe já tinha saído para a pedicure, papai ainda não tinha voltado para casa, após o supermercado. Os dois irmãos ficaram isolados da presença dos pais, que tinham uma preocupação superficial cotra a decência dos filhos.

Embalado pela paixão que tanto lhe devorava o tempo, Enoque, flor da puberdade, resolveu apostar as fichas no misticismo. Élida o amava, mentia ela. Mas como saber da verdade se ele não era um quiromante? Decidido, dirigiu-se para a tenda mais superticiosa da feira da escola, o coração a pulos, ansioso pela certeza. Leu o letreiro: "Irmã Edith". Arrumou o cabelo espetado, engoliu a saliva suja de pessimismo e abriu as cortinas. Deu o primeiro passo com o pé esquerdo.

Eram duas da manhã, mas o vigia da creche ainda estava escutando as músicas românticas pela rádio, na calçada do prédio público. Percebeu de longe o barulho da moto desembestada e suspirou um sono defeituoso. Enoque, em disparada com todos os seus sessenta quilômetros por hora, avistou de longe o perigo e pisou no freio. Não foi o suficiente. A sensação de alívio de Enoque, proporcionada pelo alcool, não deixou a moto parar antes da piçarra da esquina. O pneu da moto derrapou, quando a velocidade se tornava mínima. Mesmo assim, ele sentiu um peso na consciência.

Eles dois não tinham o costume de decidir no par ou ímpar. Nem em dados viviados em cocaína, a cambalear sobre uma superfície seca. Enoque e Enrique não tinham o mesmo tamanho, mas eles usufruíam da mesma força, herdada pelos fios acastanhados e encaracolados que adornavam suas cabeças. Por isso, a decisão seria no ringue. Quem primeiro fosse nocauteado, perderia a chance de beber do derradeiro leite artificializado. Enrique topou o desafio, as perninhas bambas. Enoque, por sua vez, já tinha um trunfo.

Em uma salinha de espera improvisada, havia duas vítimas do ocaso premeditado, além de Enoque. Ele já estava com fome, e já queria ser o próximo. A tenda da irmã Edith cheiarava a ervas embebidas em oleo aromático, o que duplicava o poder ludibriante daquele lugar espectral. a secretária-aluna da cartomante não se deu nem ao trabalho de esfregar e acender a lâmpada mágica. Nas paredes de tecidos, as fotos referentes aos variados ramos da adivinhação estavam expostas. Os olhos das velhas sibilas congeladas no tempo pareciam ainda se mexer, assustando as almas medrosas.

Esperando com certeza o momento da queda, o velho vigia se levantou da calçada com um sobressalto. Enoque ainda tinha tentado equilibrar a moto, mas já as cervejas tinham consumido suas forças. A danada caiu por cima dele: o guidom sobre seus ombros, o cano quente encima de sua perna. A batida de cabeça no chão aliviou a dor dos demais membros. Ficou desacordado. O velho vigia foi acudir o jovem naquele desespero, antes do grito de desespero e o silêncio do motor. Ninguém mais na rua. Não tinha dado cinco passos de corrida, e o vigia já se apresentava ao acidente. As mãos ásperas pela idade retiraram a moto que esmagava o rapaz contra o solo piçarrento. Pegou no pulso, o coração jovem ainda batendo. Deu uns tapinhas na cara, as pálpebras nem tremeram. O vigia apalpou os bolsos do azarado, nem se atentando aos supostos ferimentos internos. Achou o celular e discou a emergência, ainda temente por não ter aprendido com clareza como portar objetos ultra-tecnológicos.

Embora Enrique estivesse com medo, foi o primeiro a subir na cama dos pais. Ali era o octógono quadrangular onde haviam as corriqueiras lutas pela vida. Já era o terceiro confronto dos irmãos. O placar: 2 x 0 para Enoque, o mais experinete e centrado nos objetivos. Dessa vez, o iogurte era apenas um simbolo de preciosismo. Os dois se enfrentariam, por fim, pela realeza na casa: a soberania, o absolutismo, a mordomia, a superioridade, a invencibilidade. Conforme se preparavam para o combate, o juiz imparcial - o urso de pelúcia da mãe - elaborava uma síntese sobre a jornada dos competidores. Eles demontraram uma reverência infantil e começaram, com golpes de amadores e sorrisos de campeôes.

Eis que a madame Edith sentiu a presença de um garoto bonito à espera e o anunciou à sua presença. O rapaz estava nervoso. nunca tinha visto uma velha coberta de chales estampados com cores quentes. Enoque sentiu calor, talvez aquela bola encima da mesa exalasse um ar mais frio daqui a pouco. As cartas sobre a mesa convidaram o rapaz a um duelo, mas a velha se interessou mais em desmanchar as tranças do cabelo crespo. Por fim, encarou o garoto e, humildemente, permitiu que ele se sentasse em seu devido lugar. Qual seu nome? Enoque. O que você procura? Respostas. Dê-me a mão esquerda. Enoque suava o pé. Respostas amorosas? Ele fez que sim com a cabeça, acreditando que ela sempre fazia essa retórica pergunta a seus convidados. Dar-te-ei tais respostas.

Escutaram o recado, anotaram as coordenadas, assumiram o compromisso de não demorar. o velho agradeceu aos atendentes e esperou que a ambulância emergencial não encontrasse engarrafamentos burocráticos naquela madrugada. Enoque jazia no chão, sangrando uma perna, manchando a calça comprida. Estava todo sujo de piçarra. O vigia tentou dar mais um telefonema. Nas últimas chamadas, um tal de EnriqueIrmão tinha telefonado seis vezes, sem ser correspondido. Crente nas intuições do irmão, o vigia retornou a ligação. Que estivesse ele acordado! Chamou uma vez. Chamou duas. Oi, mano! Faz é hora... Aqui é o vigia da creche do Santa Clara. Teu irmão acabou de sofrer um acidente de moto. A ambulância está a caminho. Vão levá-lo para o HUT. Eu vou com ele até lá. O velho tentou ser o mais sucinto. Tá brincando, cara? É sério!? Juro por Deus e pela vida do seu irmão! Avisa pra seus pais! Tá bom... Tem algum amigo por perto, que possa confirmar ? Não senhor. Eu tô lhe falando a verdade. Vá para o HUT que eu lhe conto todo o acontecido. Desligou. Sem querer, querendo.

Enquanto os tapas e os puxões de orelha não dificultavam a ação do intermediador da luta, Enoque ia fazendo Enrique se cansar com a demora de um ato decisivo. O lençol da cama já estava todo amarrotado e pingado de suor, como em noites de delírio extremo. Os travesseiros já estavam se rasgando e Enoque, com medo da bronca da mãe, jogou-os encima do guarda-roupa, em um minuto de trégua. Mas Enrique não cansava e Enoque decidiu executar seu triunfo. Esperou até que Enrique se levantasse para atacar. Enoque empurrou o irmãozinho, as mãos abertas no tórax do pequeno. Enrique se projetou no ar, flutuou sobre a cama, antes de cair com o ombro esquerdo no chão. Enoque começou a cantar vitórias, mas foi abafado pelo grito de dor desesperado pelo irmão mais novo.

Ela decidiu atender ao pedido do jovem, mesmo a bola de cristal lhe mostrando um episódio infame no futuro daquele cego apaixonado. Edith apalpou a mão de Enoque como se lesse em braille, os olhos fechados de concentração. Suspirou e disse para o menino não temer, que a prometida o amava, feito histórias de contos machadianos. Aquilo que você mais deseja em sua amante não demorará a acontecer. Você ouvirá os suspiros e gemidos dessa moça tão próximos de ti, que não aguentarás e derramarás aquilo que você prende a tanto tempo. Nem preciso olhar as cartas. Sua primeira transa acontecerá logo, tenho certeza. Ela o ama. Enoque se admirou que a velha tenha descoberto sua virgindade. Estaria estampado na testa? Mas para ele, a irmã Edith não passava de uma chalatã. E quis se retirar daquele ambiente escuro.

E a ambulância gritou na esquina. Enoque já estava voltando a si quando os paramédicos o imobilizaram e o transportaram para o hospital de urgência. Como prometido o vigia abandonou o trabalho e acompanhou o jovem para seu destino pródigo. Já no hospital, depois de uma longa via expressa, o pai - que não havia demorado a chegar junto com o irmão - ajudou na identificação do enfermo. E recebeu o máximo de apoio do velho vigia. Enrique percebeu o ombro inchado de seu irmão e teve náuseas. Correndo para o banheiro, pecebeu no caminho vários sofrimentos isolados naquele hospital: um homem baleado, uma mulher estuprada, um homossexual espancado. Na sua mente, as palavras do irmão ecoavam tão audíveis como se ele mesmo tivesse escutado da boca da velha cigana aquela predição nefasta. De volta ao corredor, esperou que Enoque se desculpasse pela centésima vigésima sétima vez por conta daquele acontecido quando crianças. Já passou, mano. Veja! Lá vem o médico!

Ensaiou ainda uma volta olímpica ao redor da cama, ignorando os gemidos do irmão mais novo. Enoque achou que era teatro. Já estava indo buscar o iogurte na geladeira, quando focalizou as íris de Enrique embaçadas pelas lágrimas verdadeiras. Meu ombro tá doendo! É culpa sua! Meu ombro tá doendo! Enoque levantou Enrique do chão, limpou suas costas, entoando em melodia fúnebre para sua versão de mentiroso, mentiroso, mentiroso... Enoque fingia pra si mesmo. Era verdade. Tinha lesado o irmão. A quem pedir ajhuda agora? Correu pro meiro da rua, talvez algum vizinho passeasse com o respetivo cachorro. No pino do sol quente. Não me deixa sozinho! O pai vinha descendo a ladeira! Graças a Deus...

Experimentou se levantar, e a velha Edith não objetou. Enoque deu as costas para aquela mulher enganadora. A velha acendeu um cigarro e quando Enoque abriu a cortina, ela proclamou. Você sofrerá do mesmo mal de seu irmão. Ele se sentirá vingado pelas humilhações da infância. Conforme a sua arrogância e inconsequência, você perecerá do dor que impeliu a seu irmão, duplicada pelo remorso, triplicada pela idade com que se acidentará. Você sofrerá deo mesmo mal de seu irmão. Enoque, espantado, encarou a adivinha em seu efêmero discurso de despedida. Fingiu que nem tinha escutado. Deus com os ombros; ou melhor, com a clavícula.


Julio F. Sousa

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