quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Conto Mínimo.


Don Quijote
José Guadalupe Posada


Um cristo na calçada

Há uma hora, eu estou morto.
Desfaleci no meio da calçada. Peito aberto, braços estendidos feito que pregado numa cruz de sonhos deitada ao chão. Meus olhos abertos que refletiam o azul daquele céu de março e o correr das pessoas ao meu redor; eu conseguia sentir o sutil bailar das pernas e pés próximos de meus ouvidos. Joelhos apoiados no chão, braços apoiados nos braços. Meus olhos, que fitavam o vazio, estavam mortos. Mas ainda via o vazio azul do céu. As pessoas gritando meu nome (meu nome?). Chorando, clamando, rezando, pedindo perdão. Caindo em desgraça e a começar a rasgar as vestes. Pediam perdão por tudo que fizeram a mim (ou não?). Choravam, estavam nus, rasgavam a pele com suas unhas imensas e imundas de tantos e quantos. Inseriam canetas em seus pulsos e sangravam e dessangravam; o sangue jorrado em meu rosto, nos olhos abertos, outrora vivos (vivos?). Homens se agarravam às mulheres nuas e as amavam; o suor, a lágrima e o sangue. A morte passou despercebida, quando tudo se perdia no doce mistério do amor em vão. As rezas deram lugar aos gemidos e o sangue não mais brotara das carnes rasgadas. O céu 'inda era azul. Deram por si e estavam mortos.
Ergui-me e voltei para casa.

Valdemar Neto Terceiro

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