Quando
terminava de acordar Miranda se encontrava preparando a refeição de desjejum,
escutou o choro de uma criança. Ela era criada no castelo dos Brindowffs e era
responsável pelas refeições das filhas do Conde. Era casada com um dos pagens
daquele castelo. Era ruiva e sua beleza encantava a todos da vila e também aos
nobres, todos conheciam seu marido e a eles respeitavam. Os dois moravam em um
quarto nos fundos da cozinha que dava para uma das vielas da vila e como ficava
atrás do castelo era sempre deserta. Miranda curiosa foi verificar do que se
tratava e quando abriu a porta havia um cesto com uma criança enrolada em panos
que aparentavam ser de um clã estrangeiro. Talvez uma tribo nômade pudesse ter
passado ali naquela noite e vendo o castelo pensassem que eles poderiam tomar
conta daquele adorável bebê. Apesar de toda aquela vila ser cercada pela
floresta, o castelo dos Brindowffs podia ser visto a certa distância, pela
altura. Seu telhado alcançava o céu, passando as copas das árvores. E por isso
chamava a atenção de quem passava nas estradas ao longe. E ali, na porta
daquele castelo, deixaram aquele pequeno bebê.
-
Os deuses sejam louvados! Eles atenderam minhas preces! – Disse Miranda se
derramando em lágrimas.
Ela
não podia ter filhos e não sabia se era ela estéril ou se era seu marido. Ele
não ousara tentar ter um filho com outra mulher e nem ela com outro homem, o
que era comum naquele clã, pois ter um descendente era o que os tornava membros
definitivos do clã dos Cegnoman e que os possibilitava de participar dos cultos
para os deuses. E até então Miranda e seu marido sempre foram impedidos de se
juntarem ao seu clã nos cultos. Miranda aprendeu sozinha a arte de louvar os
deuses. Ela e seu marido saíam em todas as luas cheias para perto do lago do
Conde Brindowffs onde faziam os cultos e realizavam os sacrifícios.
Miranda
segurava a criança em seus braços enquanto apresentava ao seu esposo Xermor.
Eles choravam enquanto agradeciam a Serminy a chegada da criança. Mesmo não
sendo do sangue deles era motivo de felicidade o aparecimento daquele lindo
bebê.
-
Miranda, está errado. – exclamou Xermor. – Não podemos ficar com ela.
-
Por que Xermor? Deixaram-na aqui em nossa porta.
-
Mas e se alguém vier reclamar que ela pertence a outro clã? Olhe só os cabelos
dela... – escorre mais uma lágrima dos olhos do pagem.
-
Miranda, Miranda – entram correndo na cozinha os dois filhos maiores do conde.
– estamos com fome Miranda.
Aqueles
dois estavam sempre famintos. Sávia era a mais velha, era uma mocinha esperta e
sorridente. Já tinha visto oito verões e já lhe era permitido cuidar de seu
irmão mais novo, Minplar que ainda não andava. Giuze era o irmão do meio em
quem Sávia sempre colocava a culpa de suas travessuras. Mas o conde conhecia
muito bem a filha que tinha e nunca castigava nenhum dos dois. Os olhos de
Miranda e Xermor brilhavam olhando os pequenos condes.
-
O que vocês têm embrulhado aí? – a pequena perguntou correndo para o colo do
pagem.
Com
um leve sorriso, vagarosamente foi descobrindo a face daquele bebê que estava
em seus braços. Sávia era muito curiosa e se apresentava impaciente. Quando viu
que se tratava de uma doce criança ficou atônita.
-
Serminy esteve aqui esta noite. – exclamou boquiaberta.
-
Não é lindo esse anjinho?
-
Nossa! Os cabelos são da cor da neve. Ela veio trazer o inverno?
-
Não. O inverno são os deuses que trazem.
-
Vou contar pro papai. – saiu correndo gritando o conde.
-
Meu querido, o que diremos ao conde? Sávia ainda é ingênua, mas o conde não. –
retrucou Miranda.
-
Contaremos a verdade. E seja o que Serminy quiser.
O
Conde de Brindowffs era um homem gordo, mas ainda era jovem. Todos da vila
gostavam dele, pois era um homem gentil e bondoso. Ninguém naquela vila o vira
maltratar alguém e por isso recebeu o apelido de “Coração de Zanif”. Zanif era
uma flor rara que crescia nas redondezas da vila e que perfumava os campos no
outono.
-
Deixe-me ver a criança. – pediu o conde entrando na cozinha com passos leves.
-
Meu Senhor, não sei como explicar.
-
Não precisa explicar doce Miranda. – interrompeu enquanto caminhava até ela. –
Serminy te abençoou e se alguém reclamar que essa criança é de outro clã terá
que resolver isso comigo.
Miranda
sorriu e pegou a criança no cesto enquanto via o sorriso largo do conde.
Parecia mais feliz que o casal, pois ele sabia o quanto era importante para os
dois a chegada daquela criança. Miranda continuou nos seus afazeres de cozinha
enquanto o conde desaparecia pela casa.
-
Miranda, eu posso cuidar do seu bebê também? – pediu Sávia.
-
Claro querida.
As
famílias da vila não tinham babás, eram as crianças mais velhas quem tomava
conta dos bebês.
-
A lua cheia está chegando! Vá pensando em um nome para ela. – disse o conde.
Era
o costume dos Cegnoman escolherem o nome, mas só dizer no dia do culto com toda
a vila presente. Mas o conde sabia que eles não estariam nos zegads
compartilhando com os deuses e com a vila.
-
Senhor, a lua nos dirá o nome.
-
Tome. – disse entregando a criança. – Se quiser, pode deixar a criança no cesto
com Minplar para que Sávia cuide dos dois.
-
Seria uma honra Senhor.
Faltavam
poucas semanas para o inverno. O conde sabia que o casal costumava reverenciar
os deuses na lua cheia. Ele não os reprimia, pelo contrário, os acobertava para
que ninguém soubesse. Os sacerdotes eram severos quanto a cultos prestados por
pessoas que não podiam por ordem da natureza. A decapitação era o destino que
os aguardava caso fossem pegos. Nestes casos o conde não conseguia fazer nada
que pudesse impedir o ato cruel. No jardim do castelo havia um lago, e como era
protegido por cercas vivas, ninguém da vila ousava entrar ali sem a permissão
do conde. Miranda e Xermor estavam a beira do lago em qualquer lua cheia, se
encontravam protegidos dos olhares da vila e dessa vez havia um motivo especial
pra se fazer presente novamente.
E
assim o fez. Sávia cuidava da criança como se fosse sua própria irmã. E
conforme os dias passavam Sávia ficava mais apegada a criança. Os dias eram
curtos e as noites cada vez mais frias. A lua cada dia maior. As brisas
sopravam melodias que inspiravam canções que Miranda entoava ao anoitecer. E
sem esquecer o dia que a criança apareceu, soprava a deusa da fertilidade os
cantos de agradecimento, mas em nenhum momento esquecia sua própria natureza,
sua condição precária de mulher e a condição precária do esposo. Ambos fortes e
amantes em abundância, cada dia se tornavam mais cúmplices.
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