terça-feira, 3 de janeiro de 2012

SHELLIA I (conto parte III)




Quando terminava de acordar Miranda se encontrava preparando a refeição de desjejum, escutou o choro de uma criança. Ela era criada no castelo dos Brindowffs e era responsável pelas refeições das filhas do Conde. Era casada com um dos pagens daquele castelo. Era ruiva e sua beleza encantava a todos da vila e também aos nobres, todos conheciam seu marido e a eles respeitavam. Os dois moravam em um quarto nos fundos da cozinha que dava para uma das vielas da vila e como ficava atrás do castelo era sempre deserta. Miranda curiosa foi verificar do que se tratava e quando abriu a porta havia um cesto com uma criança enrolada em panos que aparentavam ser de um clã estrangeiro. Talvez uma tribo nômade pudesse ter passado ali naquela noite e vendo o castelo pensassem que eles poderiam tomar conta daquele adorável bebê. Apesar de toda aquela vila ser cercada pela floresta, o castelo dos Brindowffs podia ser visto a certa distância, pela altura. Seu telhado alcançava o céu, passando as copas das árvores. E por isso chamava a atenção de quem passava nas estradas ao longe. E ali, na porta daquele castelo, deixaram aquele pequeno bebê.
- Os deuses sejam louvados! Eles atenderam minhas preces! – Disse Miranda se derramando em lágrimas.
Ela não podia ter filhos e não sabia se era ela estéril ou se era seu marido. Ele não ousara tentar ter um filho com outra mulher e nem ela com outro homem, o que era comum naquele clã, pois ter um descendente era o que os tornava membros definitivos do clã dos Cegnoman e que os possibilitava de participar dos cultos para os deuses. E até então Miranda e seu marido sempre foram impedidos de se juntarem ao seu clã nos cultos. Miranda aprendeu sozinha a arte de louvar os deuses. Ela e seu marido saíam em todas as luas cheias para perto do lago do Conde Brindowffs onde faziam os cultos e realizavam os sacrifícios.
Miranda segurava a criança em seus braços enquanto apresentava ao seu esposo Xermor. Eles choravam enquanto agradeciam a Serminy a chegada da criança. Mesmo não sendo do sangue deles era motivo de felicidade o aparecimento daquele lindo bebê.
- Miranda, está errado. – exclamou Xermor. – Não podemos ficar com ela.
- Por que Xermor? Deixaram-na aqui em nossa porta.
- Mas e se alguém vier reclamar que ela pertence a outro clã? Olhe só os cabelos dela... – escorre mais uma lágrima dos olhos do pagem.
- Miranda, Miranda – entram correndo na cozinha os dois filhos maiores do conde. – estamos com fome Miranda.
Aqueles dois estavam sempre famintos. Sávia era a mais velha, era uma mocinha esperta e sorridente. Já tinha visto oito verões e já lhe era permitido cuidar de seu irmão mais novo, Minplar que ainda não andava. Giuze era o irmão do meio em quem Sávia sempre colocava a culpa de suas travessuras. Mas o conde conhecia muito bem a filha que tinha e nunca castigava nenhum dos dois. Os olhos de Miranda e Xermor brilhavam olhando os pequenos condes.
- O que vocês têm embrulhado aí? – a pequena perguntou correndo para o colo do pagem.
Com um leve sorriso, vagarosamente foi descobrindo a face daquele bebê que estava em seus braços. Sávia era muito curiosa e se apresentava impaciente. Quando viu que se tratava de uma doce criança ficou atônita.
- Serminy esteve aqui esta noite. – exclamou boquiaberta.
- Não é lindo esse anjinho?
- Nossa! Os cabelos são da cor da neve. Ela veio trazer o inverno?
- Não. O inverno são os deuses que trazem.
- Vou contar pro papai. – saiu correndo gritando o conde.
- Meu querido, o que diremos ao conde? Sávia ainda é ingênua, mas o conde não. – retrucou Miranda.
- Contaremos a verdade. E seja o que Serminy quiser.
O Conde de Brindowffs era um homem gordo, mas ainda era jovem. Todos da vila gostavam dele, pois era um homem gentil e bondoso. Ninguém naquela vila o vira maltratar alguém e por isso recebeu o apelido de “Coração de Zanif”. Zanif era uma flor rara que crescia nas redondezas da vila e que perfumava os campos no outono.
- Deixe-me ver a criança. – pediu o conde entrando na cozinha com passos leves.
- Meu Senhor, não sei como explicar.
- Não precisa explicar doce Miranda. – interrompeu enquanto caminhava até ela. – Serminy te abençoou e se alguém reclamar que essa criança é de outro clã terá que resolver isso comigo.
Miranda sorriu e pegou a criança no cesto enquanto via o sorriso largo do conde. Parecia mais feliz que o casal, pois ele sabia o quanto era importante para os dois a chegada daquela criança. Miranda continuou nos seus afazeres de cozinha enquanto o conde desaparecia pela casa.
- Miranda, eu posso cuidar do seu bebê também? – pediu Sávia.
- Claro querida.
As famílias da vila não tinham babás, eram as crianças mais velhas quem tomava conta dos bebês.
- A lua cheia está chegando! Vá pensando em um nome para ela. – disse o conde.
Era o costume dos Cegnoman escolherem o nome, mas só dizer no dia do culto com toda a vila presente. Mas o conde sabia que eles não estariam nos zegads compartilhando com os deuses e com a vila.   
- Senhor, a lua nos dirá o nome.
- Tome. – disse entregando a criança. – Se quiser, pode deixar a criança no cesto com Minplar para que Sávia cuide dos dois.
- Seria uma honra Senhor.
Faltavam poucas semanas para o inverno. O conde sabia que o casal costumava reverenciar os deuses na lua cheia. Ele não os reprimia, pelo contrário, os acobertava para que ninguém soubesse. Os sacerdotes eram severos quanto a cultos prestados por pessoas que não podiam por ordem da natureza. A decapitação era o destino que os aguardava caso fossem pegos. Nestes casos o conde não conseguia fazer nada que pudesse impedir o ato cruel. No jardim do castelo havia um lago, e como era protegido por cercas vivas, ninguém da vila ousava entrar ali sem a permissão do conde. Miranda e Xermor estavam a beira do lago em qualquer lua cheia, se encontravam protegidos dos olhares da vila e dessa vez havia um motivo especial pra se fazer presente novamente.
E assim o fez. Sávia cuidava da criança como se fosse sua própria irmã. E conforme os dias passavam Sávia ficava mais apegada a criança. Os dias eram curtos e as noites cada vez mais frias. A lua cada dia maior. As brisas sopravam melodias que inspiravam canções que Miranda entoava ao anoitecer. E sem esquecer o dia que a criança apareceu, soprava a deusa da fertilidade os cantos de agradecimento, mas em nenhum momento esquecia sua própria natureza, sua condição precária de mulher e a condição precária do esposo. Ambos fortes e amantes em abundância, cada dia se tornavam mais cúmplices.

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