terça-feira, 21 de junho de 2016

Momento zero II


A luz intensa, os pés descalços no frio inverno eterno do inferno. As massas energizadas, resolutas, adelante. Metatron trocava palavras suaves com Satan.

- Então você não tinha ideia que isso aconteceria Satan? O que diabos você estava fazendo aqui esse tempo todo? Comete um erro banal como esse! Nosso plano não funcionará pois nós não sairemos daqui.

- Metatron você está assim tão ansioso? Tão temeroso que não conseguiremos dar conta de Deus e seus asseclas? Acredita mesmo que o nosso maior problema é lidar com essa massa bestial? Como disse ao nobre pensador, sabia sim de pequenas reuniões. Sei da presença enorme de agitadores que cá estão por eras a fio, sem palavrear ou discursar, apenas saboreando o limite da dor e agonia, desejando morrer, mas já estando mortos. Cada castigo imputado a mais era a precaução para que não houvesse possibilidade de falhas como esta.

- E então ao que você atribui isso? Estão organizados. Com armas rudimentares, tochas de fogo, um semblante desbravador e de irreversibilidade. O que você não fez que permitiu a leva desses moribundos se articular e se colocar diante de nós com tamanha energia?

Satan, um ser que jamais compreendi, ou talvez o entendera por demais. Ele torna a simplicidade complexa. Ele faz da complexidade algo simples. Parece ter a onipresença, a clareza das coisas e de tudo que está ao seu redor, mas joga, instiga e semeia a dúvida de que não está a par de tudo. De uma forma que, não sabemos até onde estamos imergidos na sua habitual diversão de controle de destinos. Ele mantinha o mesmo semblante. O mesmo sorriso sarcástico, a mesma fala serena, mas também macabra, pelo tom de voz próprio do demônio. E com a mesma 'leveza', respondia:

- Realmente Metatron, há uma coisa que eu não pude antecipar. Por pura subestimação ou por estar tão envolto nos sentimentos de tortura, meu deleite, passatempo que tinha por aqui. A capacidade de compreensão da dor do outro e a motivação para suprimir essa dor. Isso é até engraçado. Nós, objetivamente sempre olhamos para essas reles existências como seres com um final bem definido. Eles se matam, eles governam uns aos outros, criam estruturas podres desde o início e exaltam as mesmas, exalam uma cultura pobre, hierarquizada, divididora, fraca e completamente assassina. Não haveria outro fim para esta raça. Nós, que possuímos o poder de previsão, não pestanejamos em resenhar esse caminho. Nossa existência primeira passa pela ordem desse caminho. Quando tentamos aconselhar e quando julgamos cada um destes párias. Era resoluta nossa ideia de imperfeição. Não digo que isso é sinal de perfeição, mas idealizei tanto a lama da destruição que eles mesmos se jogam e se lambuzam, que não poderia imaginar; digo, até imaginava, mas talvez não num agora. Conceber tal possibilidade, nas condições em que eles se jogam e que nós os deixamos, era de tal maneira impossível. Muito engraçado. Porém ...

- Porém? O que? Você confessa sua falha de observação que pode por em jogo todo nosso plano, toda a nossa peleja em chegar esse momento de desnivelar a força daqui com a da armada que ainda guarnece Zion e Aldebaran. Como há um porém, como há um semblante de vitória e de pouco interesse nesse levante por sua parte? O que ainda tem guardado Satan?

- Não saber que isso aconteceria neste momento, não significa dizer que não tinha me preparado para tanto. Ou porque estaríamos nessa partida? Nós não precisamos participar da fúria da humanidade consigo mesma. A humanidade que se vire. Não há justificativa para que eles não possam se destruir ou se resolver. Ou caminham para um outro horizonte, ou repetem aqui aquilo que têm reproduzido na Terra.

- O quê? Então jogaste um humano para ser sacrificado pela massa, juntamente com os teus antigos servos? Por que isso caberia e daria uma chance para nós não nos envolvermos na batalha que surge?

- Mas pra quê se envolver numa batalha que nada nos diz respeito?

- Ora, mas aqui são seus domínios! A fúria é contra você!

- São meus domínios? Por um acaso aquele é o regente do inferno. Um humano. Representa exatamente as forças opressoras da existência do mundo real deles. A fúria é particular? Não, a fúria é contra toda estrutura. Não era desde o início de seu objetivo findar com esse mundo, como forma de mascarar nossos movimentos para caminharmos à espreita dos fatos? Metatron, agora você me surpreende com tamanha ingenuidade.

Satan elaborou tudo, sem saber se tudo aquilo iria acontecer. Mas sempre se preocupou em colocar um plano escape, algo que não atrapalhasse seus planos originais. Planos? Qual seriam na verdade? Essa aliança com o General dos Anjos, a busca pela conquista de Zion e Aldebaran não me parecia lógica para alguém que já era senhor de terras infinitas que causavam tanto prazer ao seu regente. Isso não dava abertura para achismos. Eu ponderei muito nas minhas observações, mas uma organização das pessoas do inferno me parecia algo inevitável. Mas saber o que passava na cabeça de Satan para não balançar em nenhum momento instigava-me mais e mais. Naquele instante muito mais que o motivo que me levara a morar no inferno. Não resisti:

- Satan! Isso é ilógico não acha? Não digo que você perderia a batalha, não sabemos ao certo as táticas dessa massa que chega irá utilizar. Temos ideias é verdade, mas nada com certeza. Mas isso não é motivador suficiente para que o senhor destas terras fuja, corra como se já tivesse perdido uma guerra sem lutar. Nem mesmo encontro lógica nessa caminhada para conquistar outras terras. O que você realmente está pretendendo? Apagar sua existência? Ela não faz sentido? É vazia por completo? O que me diz então? A cartada final é essa jogada pífia? Pra onde vai essa aliança, pra onde vai toda sabedoria?

- Nobre pensador ... desconfiava que tinha recuperado sua humanidade. Sente essa força e razão característica, única de vocês? Nós não a temos. Nem conseguimos produzir. Há naquelas massas uma disciplina, uma energia coletiva fortíssima que nunca conseguiríamos sintetizar com perfeição. Somos seres perfeitos, indeléveis. Mas quaisquer manifestação nossa de virtudes ou sentimentos não é genuína, é apenas perfeita.

- Mas você rompeu com esse estigma criado em sua gênese.

- Sim, mas de forma perfeita. Nunca da forma humana. E isso não se trata de invejar a existência destes abjetos, nunca será por isso. O plano de perfeição tem suas nuances sobre o que vocês entendem ou buscam em perfeição. Ele permite a queda, o erro, o sentir. Tal qual como fiz e por várias vezes fostes testemunha. Mas embora haja a permissão, as virtudes de perfeição coíbem as possíveis margens de falha e trabalha no sentido de retomar ao equilíbrio. E é exatamente isso que tira todo prazer da coisa.

- Então tudo isso é porque queres poder errar?

- Não, quero fissurar as estruturas tomadas como sólidas dessa existência. O engraçado é isso. Há entre minha vontade e a vontade daquela massa, proximidade. Que vocês se resolvam nobre pensador!

- Espere aí Satan, isso não tem nada a ver com a nossa aliança. Como assim você não quer tomar o poder?

- Metatron, só você não enxerga o ciclo eterno que isso leva. Vou bagunçar algumas coisas sim. Não pelo poder puro, mas para poder ver mais sangue.

- O quê? Eu não consigo compreender!

- Não culpem ao Diabo, Sócrates.

Satan mergulha num portal. Metatron ainda um tanto atônito, como se baqueado por um golpe certeiro, titubeia por uns instantes, mas segue, junto com a armada alada e um sem número de demônios. Mais atrás, começam os urros na luta de humanos contra humanos e demônios, agora servos do Duque de Copas. Este, em silêncio diante de todos os últimos atos. Mas de pé. E com um sorriso cadavérico. Em poucos instantes, o silenciar é quebrado.

- Previstes isso tudo nobre pensador. Sei que não para agora, mas sabia que isso era uma realidade possível. Será que pelos mesmos motivos que eu?

- Acredito que você se mantem irredutível sobre a condição humana e pensa que a guerra ali embaixo é consequência da sede insaciável da humanidade em guerrear, dividir, submeter seus pares a uma situação de ultraje, de tortura e de morte. É isso?

- Exatamente. Não há nenhum outro caminho ou outro tipo de organização no futuro dessa corja. Não é assim que está gravado em seus papiros?

- Duque ... você vai perder essa guerra.

Num estalo, Sofia se coloca diante de nós ...


Sócrates jogando poker em Cocytus sem Satan

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