sexta-feira, 24 de junho de 2016
Momento zero III
Estava a nossa frente Sofia, aquela que em vida, era a filha do Duque. Mais velha, mais forte, com a expressão marcada por um senso de disciplina, determinação e vigor. Embora seus olhos ainda demonstrassem aquela vontade de devorar o mundo. Aquela garotinha que era a representação da bondade, do bem real da Terra, viu o mundo e suas distorções, suas opressões em segundos. Duque mais uma vez em silêncio, embora fitasse sua filha concentradamente. Antes que eu pudesse quebrar a fala, Sofia se antecipará.
- Sim, Duque de Copas. Esta é quem era sua filha. A distorção do espaço e do tempo fez com que alguns anos passassem. A saída de Satan, que aconteceu aos nossos olhos, não aconteceu em poucos minutos, já se passaram anos, eras. Sua mente irá proporcionar tudo que você deu continuidade neste lugar, tudo o que você reproduziu e representa. E é por isso que essa insurreição de massas está aqui. Para por um fim nisso tudo. (...) Eu tinha compreensão na Terra do significado de minha essência, ou como descreveu Metatron, a expressão do bem da Terra. Mas essa alcunha está equivocada. O que chamam de bem, poderia ser muito melhor descrito como sentimento de justiça e de liberdade para o mundo. De certo que um tanto mais jovem, criança, com uma redoma de males e sangue me guardando, eu não tinha argumentos suficientes para questionar a ordem, o meu destino em nobreza, o mundo. Para cá fui enviada, ainda com a sensação de originalidade, como peça única. Qual não foi minha surpresa ao saber que tantas pessoas também carregavam essa vontade de construir um outro mundo. E olha no que refletiu nossas ações silenciosas e organizadoras. Estamos aqui a frente de Cocytus, para queda deste sistema.
- Você está bem falante Sofia de Copas ...
- Meu nome é Sofia de Spem. Não carrego a alcunha de quem tem o privilégio-mor desse sistema.
- Pois bem, Sofia Spem. E também nobre pensador. As lembranças desses 20 anos estão fluindo, embora tenhamos dados dois ou três passos nas escadarias do templo, vendo Satan e Metatron partirem. É um tanto cômico, um tanto perturbador lembrar de feitos que você não pode vivenciar. Quisera muito vivenciá-los, pois era exatamente dessa forma que eu seguiria a regência do Inferno. Realmente você não sabe Sofia, mas desde seu desenvolvimento, de sua capacidade quase como numa aura de transformar a realidade ao seu redor, já tinha ideia do que você representava e por isso mesmo mantive você sobre as rédeas dos muros de nosso palácio. Como o mundo iria lidar com tal conhecimento? Ora, bastava o que existia, nobre, humanos imundos, guerra e sangue. Não seria permitido para a humanidade ter outro destino. De lá eu já me sentia o senhor do Inferno, julgador de toda a raça putrefata que habitava feito praga o planeta. Nada mais sábio, nada mais lógico e correto está onde estou agora e conduzir estas pradarias com este sistema. Nenhum levante capenga será capaz de retroceder meu progresso.
Duque parecia não enxergar. Vociferava suas lamúrias e ofensas para Sofia, que mirava com desdém cada gesto ou palavra. A cegueira também dava conta do resultado do combate. Era visível quem irá triunfar. Por mais desgastados, mutilados e semi-mortos que pudessem parecer, toda trupe de humanos se revestiu da certeza da vitória, e lutavam com afinco e força esmagadora, derrotando tanto os humanos que se colocavam a favor do inferno, quanto as mais colossais aberrações demoníacas. Era uma questão de tempo. A massa tinha se organizado e se municiado bem para a ocasião. Até mesmo a distorção do espaço e do tempo fora estudada e bem utilizada para se escolher um momento exato. O sistema não era tão assim seguro e perfeito. Saberia Satan desses caminhos? Cada vez mais novas dúvidas surgiam. Meus pensamentos foram interrompidos pelo diálogo entre ex-pai e ex-filha.
- Não há motivo para continuar ouvindo ou especulando por uma rendição que não vai acontecer. Eu vim aqui para me certificar de que nada deve ser salvo, tudo deve ser eliminado para que possamos construir uma outra realidade. As proporções territoriais daqui são as mesmas da Terra. E aqui será o nosso lugar, o nosso novo lugar. E não há nada que possa ser feito pra mudar os rumos dessa história. Adeus.
- Não há tempo nem para um pequeno jogo de cartas Sofia? Observemos o resultado do jogo, enquanto jogamos este que com certeza será o último carteado entre a gente.
- Ora, acredita que irei suscitar a mesma história que Satan fazia por aqui. Desista, nada irá mudar o que está vindo.
- Nobre pensador! O que me diz disso tudo? Qual o caminho pra outras possibilidades?
- Creio eu, caro Duque, que chegamos no instante do caminho que não há retorno; estamos na fase irreversível de uma reação química. O que tiver de ser agora, será. Seu maior equívoco, penso, foi em não manter a sabedoria, o cuidado que era tão característico de sua personalidade. Ao alimentar-se do poderio do ser demônio, perder toda sua sagacidade e agiu com limitação, requentando velhas práticas. Um ponto isso iria estourar. Sinto muito.
- É verdade o que você fala Sócrates. E por isso ...
- Duque agarrou-se a Sofia e lançou-se para o meio do adro de Cocytus, exatamente o lugar do portal, que permanecia ativo (...) e nele sumiram ...
Poucos minutos, mais de 20 anos. No total, perde a noção de quanto havia passado. De tantos jogos que se sucederam, entre goles, convites no tempo e história para um chá de gengibre e coca. Meus escritos naquele lugar tinham chegado ao fim. Não um fim, finalista e encerrador de ideias. Mas tudo que poderia observar já havia sido documentado, refletido, absorvido. A condição humana de existência não pode ser estabelecida e vinculada com a própria auto-destruição. De certo que existem castas grupos que assim tocam os destinos. Consideravelmente quem está acima de um sistema hierarquizado. Onde morrem e sofrem gerações de pobres almas; muitas vezes sem pestanejar na caminhada burra; muitas vezes guerreando e se destruindo entre si. Tudo isso mantendo um grande Leviatã, o mesmo culpado maior de toda estrutura opressora estabelecida. Mas a condição humana não se apregoa, nem genericamente, nem especificamente a isso. A grande história está retalhada de resistência e de vontade de viver em harmonia. Em nenhum momento, infelizmente, todo sistema foi abarcado de tal forma que caísse em escombros irreversíveis. Mas não distante esse caminho parecia-me. E de fato, lá estava eu testemunhando o que observara. Por muito tempo a misantropia era pra mim uma certeza irresoluta. Conceito refletido a partir da solidariedade e vontade de viver em um outro mundo verdadeiramente justo. Acabava minha estadia no Inferno. Os soldados já passavam sobre as escadarias de Giudecca. Sentei na velha cadeira que tantas vezes me provocou esperas homéricas. Um gole de chá, um suspiro profundo e uma certeza. Há outros mundos e minha sede de saber nunca se cessará. (...)
Uma semana? Uma hora havia se passado? Ou quem sabe 100 anos? O sistema ruirá, conselhos se formaram, para todos os lados ajuda e coletividade. Caminhei para o adro de Cocytus. E lá mergulhei para o infinito.
Sócrates
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