sexta-feira, 24 de junho de 2016
Quando o vento sopra, é porque tá na hora
Olá, queridos e queridas!
Farei deste espaço um baú nostálgico onde a linha entre o real e o imaginário seja tão tênue quanto a que separa amor e ódio.
Não tenho objetivo nenhum senão o de compartilhar com vocês as coisas que se passam na minha cabeça, algumas fruto de minha vivência, outras de meu pensar. Espero que gostem e que também desgostem. O importante é não ficar parado e se expressar do jeito que desejar.
Bem, sem mais delongas, boa leitura!
Era por volta de quatro da tarde e o sol já começava a baixar de modo que vários pontos de sombra iam surgindo por detrás das casas, muros e construções inacabadas. Já dava para sentir o vento soprar e quando o vento sopra, é porque tá na hora.
– Hoje eu vou cortar e ainda vou arrastar! – pensei ambicioso. Minha mãe tinha saído para trabalhar e só voltaria à noite: tudo o que eu tinha de fazer era empinar no quintal de casa mesmo e entrar antes dela voltar.
Da sala de casa dava para ouvir os primeiros movimentos lá fora. Dava para reconhecer o som de pés descalços ou mal calçados caminhando e depois parando num ponto fixo. Estavam combinando algo…
– Estica a linha até o fim do campo. – alguém falou.
– Hey, deixa cerol pra mim também, o meu tá fraco! – resmungou o outro. Mal ouvi aquilo e já senti meu corpo tremer de excitação e ansiedade. Os adversários já se preparavam para a batalha de uma guerra que duraria por toda a minha juventude.
Corri para o quarto e peguei a minha pipa que estava escondida debaixo da cama. Era feita de seda em formato de “X” com as cores preto, amarelo e verde (lembrava um pouco a bandeira da Jamaica) e com um rabo de fita azul, feito de saco de lixo. O rabo estava meio embaraçado e eu até pensei em desembaraçar, mas mudei de ideia. “Melhor fazer isso só na hora de amarrar a linha”, pensei comigo mesmo. De dentro do cesto de roupa suja, tirei o meu tubo de linha. Era um tubo misto de linha nova e velha, todo sujo, mas que dava para o gasto (quando o tubo de alguém era misturado, a gente costumava implicar com essa pessoa trocando a palavra “Metros” por “Nó”. Se o tubo era de 400m, por exemplo, a gente chamava de “tubo de 400 nó”).
Voltei para a sala com a pipa e a linha e deixei-as sobre o sofá. Coloquei a chave na porta, mas minha mão tremia de ansiedade e quase não consegui abrir. E quando pensei que já tinha acabado, o abrir da porta revelou a grade externa, cujos dois cadeados eu também teria de abrir.
Ao passar pela porta, senti o mundo à minha volta: capim para quase todo lado intercalado por pistas e calçamentos. Sons distantes de carros e motos misturados ao de alguma casa tocando reggae faziam a trilha sonora daquela tarde. Era o mundo me dizendo “e aí, muleke, tá pronto?”… E aquele mundo se chama Santa Maria.
Eufórico, eu já conseguia sentir o cheiro da disputa pairando pelo ar. Era um cheiro singular que misturava capim, cola branca e de madeira (essa última fede pra caramba), papel de seda amassado e tala de coco (madeira que se usa para construir o esqueleto da pipa).
Corri vuado pro quintal para pegar o potinho de cerol, o qual eu escondia numa fenda da pia que ficava lá fora. Balancei o potinho e senti que o pó do vidro estava muito grosso, concentrado. Adicionei, então, um pouco de água à poção mágica para diluir melhor o pó do vidro até sentir que a concentração estivesse equilibrada, então entrei em casa para pegar o tubo.
Como o quintal de casa era pequeno, tive de esticar a linha dando várias voltas, prendendo cada volta em alguma ponta de cimento que ia encontrando por entre os tijolos do muro. Alguns pontos iam quebrando e derrubando a linha no chão. Então eu ia amarrando em pontos mais firmes e tomando cuidado para não deixar cair novamente, pois se isso ocorresse com a linha encerada, ia sujar toda de terra… E qualquer empinador que se preze sabe bem que cerol sujo de terra só dá numa coisa: pipa indo embora.
Linha esticada, comecei a passar o cerol. Com cuidado, fui passando a poção e observando bem para não deixar ficar grossa. Se o cerol for grosso demais, a linha pesa e dificulta as empinadas; se ficar muito fino, o cerol não aguenta mais do que um corte. Tem de estar no meio termo, bem passado e bem seco. É o que a gente chama de “linha de faca”.
Mal acabei de passar o cerol, meus olhos se encheram de brilho ao ver a primeira pipa subir. Não devia ter nem uns 3 palmos de tamanho, mas era de seda e tinha um formato legal, uma cruz vermelha de fundo branco. Perguntei-me se quem encobriu aquela pipa quis homenagear a Inglaterra ou se foi somente por fazer mesmo (era ano de copa do mundo e nessa época a gente costumava fazer pipas de acordo com a bandeira da seleção dos jogadores preferidos).
Mal subiu a primeira pipa, a segunda alçou voo. Devia ter uns 3 palmos de tamanho, feita de seda num formato “bandeira da Austrália” e tinha um rabo enorme. “Aí sim, rapaz! Isso é que é, máquina”, xavequei. Era tão grande e robusta que quando o seu dono a empinava, dava para ouvir o som do atrito da seda e das fitas do rabo com o ar. Era uma bicha lindona, óh!
Mais pipas começaram a subir e aos poucos o azul do céu foi ficando colorido, o que me fez lembrar de me apressar para subir a minha também e cortar geral (nisso eu já tinha abandonado a meta de entrar pra casa antes da minha mãe chegar, queria apenas empinar e aproveitar aquele momento, mesmo que me custasse uma surra, um castigo ou os dois). Corri à pia para lavar o cerol restante das minhas mãos, pois a cola já estava começando a secar na minha pele.
Lavei-me às pressas de modo que ainda dava para sentir vestígios de cola por entre meus dedos e unhas, mas a batalha já havia começado e isso já não importava. Naquele momento, eu não era mais uma simples criança: era um guerreiro duro o suficiente para suportar os cortes nos dedos causados pelo cerol, machucados nos pés causados pelas topadas e até o sol escaldante sobre a pele nua das costas magras (essa dureza toda só resistia até a hora do banho, porque quando a água batia na ferida, doía pra caramba!).
Olhando pro céu, comecei a pensar que cada pipa era como um dragão e o meu estava prestes a subir também. Éramos cavalheiros templários em busca de uma emoção que fizesse tudo aquilo valer à pena. E como fazia… Éramos garotos e garotas sem passado e sem futuro, filhos diletos do presente e da infinidade criativa de um mundo infantil.
Voltei para checar a linha, passando os dedos em formato de pinça para ver se o cerol já tinha secado. Não somente já estava seco como tinha ficado bacana!
O grande momento havia chegado.
Na batalha das pipas você tem de ser bom empinando, mas tem de ser melhor ainda correndo, porque caso a sua seja cortada, dependendo do vento e da distancia que a pipa está, dá para correr atrás dela e pegar de volta.
No céu, mais pipas começavam a aparecer e os primeiros cortes a ser colocados. A cada vez que uma pipa ia embora, alguém gritava lá fora “ow, trisca!!!”, “Dian, nem sentiu!”, “Toma, tisga véia”. Dava para ouvir os gritos e sons de varas de bambu se chocando na luta acirrada para pegar as pipas antes mesmo delas caírem no chão.
Uma pipa é muito mais do que uma pipa. É um depósito voador de esperança.
Correr atrás de uma pipa é uma loucura. São frações de segundos onde nada mais importa senão ter aquela pipa em mãos. Você dá tudo de si e no fim, mesmo sem a pipa, resta o coração acelerado, o corpo suado e o calor no peito. É rajada de morfina no sangue de quem nem começou a estudar ciências ou biologia (e que talvez nunca venha a estudar, no caso daqueles que conheceram o trabalho antes dos livros, quando não o crime).
À beira de uma explosão de ansiedade, voltei correndo para dentro de casa e peguei a pipa. Segurei-a pelo cabresto e já ia me preparando para correr novamente para o quintal, quando tropecei no rabo embaraçado da pipa e desabei por cima dela.
Houve um estalo, depois apenas silêncio.
Marcus Sousa
Ver também em: Quando o vento sopra, é porque tá na hora
Como fazer pipas
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