Aquele domingo nasceu com cara de sábado, ou era a própria memória corporal de cada um, que gritava à consciência que tanta extravagância não era cristã. A despeito da chuva que levara até a moral dos mais puritanos, ainda restavam, imponentes, as garrafas de bebida, como que para zombar das bacantes-donas-de-casa-respeitáveis.
A primeira a acordar não conteve um grito de horror ao perceber aquele emaranhado de corpos, em que não se podia distinguir o principiar e o findar de cada um. O cheiro dos fluidos ainda inebriava o ar e denunciava o quanto foram livres.
Pensou em quão absurda e vergonhosa era tal situação. Enxergou o marido com o rosto entre os seios de outra, e viu suas coxas pousadas entre as coxas do cunhado. Pensou nas horas que estavam por vir e em como lidariam com suas memórias. Tentou desvencilhar-se dos que estavam próximos e sair sem ser vista, para depois, quem sabe, inocentar-se e cobrar dos outros a conta de tanta falta de pudor. Não pôde, o novelo era por demais bem arranjado e, aos poucos, todos acordaram. Invariavelmente, arregalaram os olhos e levaram a mão ao rosto. O sol invadia o sobrado e prestigiava os corpos nus, relaxados e macios.
Olharam ao redor, as portas escancaradas, os cães refocilavam-se em meio à lama e os galos há muito fizeram sua contribuição ao amanhecer. Levantaram-se sem ruídos, cataram dignamente suas vestes. Uma vez mais, olharam-se, como que para gravar o rosto de cada um e, posteriormente, rememorá-los na solidão de suas virtudes. Enfim, deram-se as costas e se dirigiram a seus lares, desviando-se das garrafas e repetindo para suas consciências que tanta felicidade não era permitida.
(Giselle de Morais)
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