Eu não queria usar drogas, mas
A família me acalentou e me saciou com drogas,
A igreja me salvou com drogas,
A escola me ensinou drogas,
A ciência me prescreveu drogas,
O mercado me vendeu drogas.
Eu consumi todas as drogas, sem escolha,
Exceto as que eu, alquimista, refutei, neguei, transmutei, transcendi,
Retribui ou devolvi,
Sem saber ou sabendo...
Eu não queria fumar, mas fumei e senti prazer;
Eu não queria beber, mas bebi com alegria e sem moderação;
Eu não queria ser inconveniente, mas eu xinguei, blasfemei, injuriei;
Eu não queria cometer pecados, mas dei vazão à ira, à inveja, à gula, à luxúria, à cobiça, à mentira, à preguiça, ao consumismo
Eu queria ser solidário, mas me elegi ao centro do universo; cultuei a mim mesmo;
Eu queria ser puro e divino, mas adorei as coisas mundanas, amei pessoas, cativei mitos e coisas; zelei por minhas aparências, sem remorsos;
Eu queria viver no mundo das divindades, mas incorporei-me e me identifiquei com as fantasias materiais, comi carne de porco e bebi sangue de animais,
Eu queria estar entre os mais sábios, mas foram os ignorantes e os menos sábios que mais me ensinaram sobre os sábios e suas sabedorias; e não me arrependo;
Eu ouvi a mensagem de Cristo,
li o Alcorão de Alá e Mohammad,
meditei com Buda, Shiva, Khrisna e Brahma;
irradiei-me com Oxalá e Iemanjá, conversei com Lao, dancei com o Deus Sol e Tupã,
mas não me lembrei de nenhum Deles, quando parecia razoável fazê-lo, sem me causar auto-flagelo;
Eu queria a limpeza do corpo, mas dormi sem banhar, sem escovar os dentes e sem lavar as mãos;
Eu queria ser um humano, mas comi como os bichos, dormi como bichos, amei e reproduzi como os bichos; vivi um bicho, sem queixar do presente, do passado e fiz o presente;
Estudei ciências, filosofias e teologias; decorei nomes e renomes de cientistas, profetas, poetas e mitos; citei palavras, frases, textos e tratados, mas não usei suas teorias, comprovações, especulações, nem milagres,
Eu me tornei discípulo de gurus de todas as espécies, mas resolvi a vida em pares com quem não depende de adorações e aplausos;
Eu queria escrever livros de todos os gêneros, mas foi a vida que me escreveu contos, cantos, comédias, tragédias, romances, encontros e encantos;
Contemplei cada um em seu tempo e seu lugar; vivi;
Recitei poemas famosos e anônimos;
cantei prosas, ouvi cantos e contos;
vi tragédias e comédias,
Sem querer ou querendo.
Eu queria ser pensador.
Não pensei.
Matutei-me; auscultei-me; assuntei o mundo
Não nasci pensador,
Não me fiz pensador,
Mas inquietei-me assuntador do mundo
Assuntando e assuntado.
(Áureo João)
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