segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

CORPO - poema, poesia, filosofia




1.
Carrego um rosto,
Que tem olhos de uma cor, circunferência e área expostas,
Que tem nariz com uma estrutura e uma escultura,
Que tem boca e beiços com aberturas, comprimentos e espessuras,
Que tem geometria, com relevos, volume, texturas e simetrias;
Rosto, que não é do meu gosto.

2.
Sustento mãos,
Que produzem, organizam ou fazem seu oposto, se eu quiser;
Que acolhem, abraçam, sentem, ou afastam, conforme minha escolha;
Que expressam, indicam, cumprimentam, distinguem e me identificam,
Que podem ostentar jóias e ornamentos preciosos, raros ou simples manufaturas,
Não obstante, tem contornos, relevos, coberturas ou dimensões que me dão pouco gosto ou, mesmo, mau gosto.
3.
Ando sobre pés,
Que me suportam, com peso e massa do corpo que carrego, ainda que reclame;
Que me levam a lugares rotineiros e diferentes, simples ou sofisticados, comuns ou exclusivos;
Que podem deslizar enquanto danço, nado ou brinco,
Que podem determinar minha defesa pessoal, diante de perigos, por fugas ou ataques;
Mas, parecendo-me não ser de minha pertença mesma, rejeitam calçados mágicos, de sofisticados acabamentos ou de raro gosto, que encantam meu espírito e, sem dúvida, seriam do agrado de muitos e da inveja de outras espécies.

4.
Componho pernas, braços e troncos,
Que exibem formas, consistências e me causam muitos agrados,
Que tomam proporções físicas e comportam valores estéticos, ora controversos, ora confortáveis; Que me dão presença e diferença entre os outros,
Que me plasmam numa identidade pessoal,
mas me negam a vestimenta que desejo, o acessório que me agrada, no desenho que pretendo, e no tamanho que é meu gosto.

5.
Carrego um corpo, profano e sagrado,
Que nu e só, e solto, diante do espelho,
Vejo formas, geometrias, assimetrias e expressões de artes,
Que não estudei na escola,
Que não aprendi a admirar,
Que me pesa em tolerar e, embora não seja desgosto, não me é do melhor dos gostos.

6.
Que fizeram a Deus, autor da criatura,
Que guarda e retém o sopro vital, por seus incriados modos,
Que anima a vida, já no primeiro encontro com o corpo todo, ao nascer,
Que Lhe pudera abalar a onisciência, onipotência e onipresença, ainda que em brevíssima distração divina,
Que fizera entrar e andar o espírito que sou no lugar-corpo que não sou de bom gosto,
Pois sendo Deus inteligência pura e em sua plena vigilância, como pode ter errado a sintonia de gostos deste espírito e deste corpo? Ou, por mesma inteligência, fizera a seu propósito?

7.
Que fizeram à Natureza, poderosa e criadora,
Que, sendo mãe, possa-lhe ter causado arrogo,
Entre o criador e a criatura,
E, por obra final, tenha feito por si mesma, seu próprio gosto,
Que, sendo-me mãe soberba, pretenderia alguma vingança ou protesto comigo?
Deixou-me um rosto, um corpo, que chego até sentir vergonha, pois não me é de alto gosto.

8.
Que fizeram aos sábios humanos, inventores e mantenedores das ciências, das culturas, dos ídolos, das coisas, do mercado, do consumo, dos significados e da ressignificação de cada um de seus inventos?
Que fizeram aos artistas, que moldaram as artes e as estéticas, concretas e subjetivas, frias e quentes, em discursos incontáveis?
Que fizeram aos mitos e filósofos, que plasmaram sujeitos e seus imaginários, inventaram o belo e o não-belo; ou desnudaram-lhes!
Que predicaram gostos não antes vistos, nem percebidos, intuídos ou consumidos,
Que sendo, meu espírito, consumidor de suas criações, não pode consumir um corpo que lhe dá mais belos gostos de ter, andar, vestir, mostrar e interagir com outros espíritos de seu tempo;
Que sendo justapostos, meu espírito e meu corpo, não possam sintonizar idêntico rosto, mesmo corpo e mesmos gostos!

9.
Tenho um corpo, sensível e idealizado,
Que é cárcere de um espírito, de um imaginário, de um tempo, de um lugar; ou, do contrário, prisioneiro destes;
Que me causa medo de ouvi-lo, de auscultá-lo autêntico;
Sinto que se pudesse falar por si mesmo, em minha ofensa, haveria de me investigar perante Deus, à Natureza, aos humanos e às coisas:
Por que este espírito encarnou-se em um corpo que não lhe pode ser justo, próprio, adequado e merecido?
Por que este espírito habita em um corpo que não lhe pertence?

10.
Suplico a Deus e às forças dos entes sobrenaturais! Se o feito for de seu ofício, para que, em próximas reencarnações, façam-me serviço completo, perfeito aos critérios divinos e aos olhos e aos gostos dos entes mortais de seu tempo e lugar.

Imploro perante a Natureza, mãe e regente dos fenômenos físicos e vitais! Se a obra for de sua arte, para os acabamentos que couber em seu dever;
Apelo às ciências: ocultas, metafísicas, positivas, clínicas e estéticas! Se a incisão couber a seus instrumentos;

Aconselho-me a os entes humanos, meus pares mortais e inacabados! E, por último destes, a mim mesmo que, talvez, por arbítrio livre e singular, seja a primeira e última instância que me cabe recorrer:

O que há de se fazer? Que feito há de ser providência última e primeira?
Mudar o corpo para agradar ao espírito ou mudar o espírito? Ou o imaginário coletivo que embriaga o corpo singular e seu espírito, tornando-os irreconhecíveis? E que medidas serão justas, ao corpo e ao espírito para, a um só tempo, alinhar corpo, espírito e gosto
(Áureo João)

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