segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A mulata, um café e o tempo.




Era uma manhã como qualquer outra. O café esfriava na xícara sobre a mesa, isolada do resto do estabelecimento, enquanto os olhos dele corriam livres e despreocupados pelas paredes recém-pintadas, misturando-se com o cheiro de reforma, mais o caldeirão de fragrâncias dos clientes, mesmo sendo possível espiar ao longe um cheiro de leite fresco sendo derramado no chão da cozinha. E ali ficavam seus olhos varrendo as pinturas que sucediam em seu campo de visão, pessoas comuns, conversas comuns, mundos distantes. Aquele ar soteropolitano misturado com calor envaidecia qualquer pessoa, mas o deixava aturdido, perdido entre olhares, café e boemia falsificada. Esticava-se um pouco na cadeira e mentalizava os dias de infâmia correndo pelo Bonfim atrás das baianas, querendo mais e mais fitinhas para amarrar na pipa. Os dias eram gostosos, quentes, mas preguiçosos, nada dessa correria de hoje, desse vai e vem de corpos desprendidos de sentimento, de calor humano, apenas suor, suor e suor. E é uma barulheira, um buzinar frenético, um ar pesado, música se misturando demais, casando com quem não deve. É um gritar, meu Deus, um gritar. E ele ali, parado em meio ao turbilhão de mundos, esvaziando-se de tudo, dos sentimentos, das dores, das marcas, das memórias, das prestações, de tudo que o esperava lá fora: um mundo que não o queria, por isso o expulsava indiretamente da sua dança – uma falsa valsa que nunca começava, que ficava apenas nas primeiras notas de uma canção que sumia assim que se aceitava dançar.

- Tempos de guerra, meu jovem. – dizia um cidadão envelhecido pelas amarguras da vida do outro lado do local. Usava um chapéu de couro falsificado com uma fita de cor escura. Seu rosto era a marca fiel daquele povo bastardo. Cabelos grisalhos, boca quase sem dente e um ar de que a vida deveria ter passado sem pressa. – Esse mundo anda perdido. Todo mundo querendo matar todo mundo, mulher se dando por aí… Olha lá a filha da Dona Margarida que se espichou toda e agora nem é mais menina moça. Fica descendo a ladeira do Pelô mexendo aquela parreira de bunda como se levasse nas cadeiras o diabo. – E voltavam os murmúrios de um novo assunto que mexia com a verdade e dignidade de todos, os discursos justos sobre educação, família e valores, que eles mesmos esqueciam.

- Hipócritas – pensava consigo enquanto seus dedos corriam pelo arco da xícara, desenhando-a como uma silhueta de uma dama formosa que ele não possuía. “Tempos de guerra”, disso o velho tinha certeza, tempos difíceis que correm tão desesperados que nem podemos experimentar o néctar dos dias, saborear as tardes sentado em um banco qualquer, vendo as ondas beijarem a praia, as mocinhas passando pela calçada com seus cabelos ao vento, tão desprendidas das dores, das mágoas de corações secos pelo tempo – senhor de todas as verdades. Sentir a brisa das tardes no Rio Vermelho, contemplando o pôr-do-sol, presenciando o pincel divino tingir todo o céu com um vermelho sangue que se confunde com o amarelo ouro das riquezas dos tolos. Tudo assim despreocupado, à espera da queda de um querubim qualquer.

Ele voltava dos seus devaneios toda vez que sentia o calor ser baforado pela porta adentro, como se o diabo tivesse surgido das profundezas e viesse se refrescar na sombra do café do Seu Boja, homem bem aplumado de nada, cheio de um orgulho estúpido por não ter nascido nessa terra, sendo bem que viera de um interior tão feio, que nem o capeta lá passaria férias. Outros diziam que tinha saído corrido de uma dessas fazendas do interior da Bahia por ter se metido com mulher casada, e agora residia num beco por aí se sentindo o sulista.

- Malditos…

E o cheiro do café ia subindo como se o ar o conduzisse em uma dança celestial, rodopiando pela face do rapaz que ainda observava enamorado o líquido negro a esfriar diante seus olhos. Uma preguiça forçada, uma falta de vibração na vida. Pra que queimar a língua se eu posso esperar? – pensava ele. Melhor continuar parado, aturdido, viajando nas possibilidades, vendo as histórias de vidas alheias se confundirem com a cadeia de erros costumeiros. Nada mudava, tudo permanecia intacto, como se os homens estivessem sujeitos ao fracasso eterno, regressar ao pó do início dos tempos. Talvez tudo fosse um prelúdio de um fim inevitável. Uma Sodoma que estava dando passos para trás, pronta para nos enxergar, nos engolir e simplesmente desaparecer.

Seus olhos correram com um certo entusiasmo quando seu nariz apontou em direção a porta: um novo cheiro no ar, um novo perfume acre que se fazia presente naquela sinfonia de aromas. Uma mulata entrou. Seu sorriso poderia fazer chover em qualquer plantação a beira do fiasco, terra nenhuma diante tal beleza permaneceria seca, pois os anjos, com certeza, estavam chorando pela perda do mais divino milagre. Tinha lá um beijo escondido no canto inferior dos lábios, que despertava em qualquer um que notasse, o desiderato de um beijo roubar. Aquele caminhar despertava ânsia de desespero, um remelexo inexplicável, como se o mundo estivesse parado, ou ela que caminhava em câmera lenta. O sol? O sol parecia conjugar verbos perfeitos nas curvas daquela senhorita que ia quebrando as barreiras com seu vestido solto, ombros mostrando, pele linda, cheia de brilho, como se uma vida nascesse a cada momento que os raios de sol escorregavam por aquela epiderme. Anjo ou demônio, não importava a origem, os olhos dele agora ressuscitavam de um sono milenar, como se nenhum dos anos anteriores tivesse tido alguma importância. Ele nasceu no exato instante que o sorriso daquela divina mulata encontrou com os deles.

Imaginou os possíveis beijos, as carícias que dedicaria apenas a ela, tal qual um poeta destinado a ter somente uma musa: ele a cortejou. Cortejou-a e desejou-a de todas as formas que cabiam a um único homem. E sentiu o calor lhe aquecer, como se estivesse dentro daquela xícara esquecida sobre a mesa diante de si mesmo. Como se todo o universo tivesse conspirado por aquele instante. Desenhou possíveis cabanas, praias, e camas que dividiria com ela, o primeiro suspiro, a jura de amor, os dengos, as caminhadas no Jardim dos Namorados. Ela solta como a brisa, ele contido, segurando a sua mão para não escapar (ou deixá-la ir), representando todas as santidades poéticas em questões de segundos quando ela pousaria para as fotos que ele revelaria para enfeitar seu quarto, seu mundo, sua alma. E os sorrisos dela seriam como pílulas de entusiasmo, de força – um prolongamento do tempo, da vida que antes dela se esvaía por todos os lados, olvidando de alimentá-lo, apenas deixando-o para uma morte certeira e solitária. E tudo era vazio, era frio. Aquela mulher carregava em si o sol do verão mais quente, o frio do inverno mais profundo, ela tinha o mundo e o firmamento entre os dedos, a boca e os olhos. E ele apenas imaginou… Teriam filhos, teriam brigas, teriam reencontros, recomeços, velhice agarrados à beira de um salgueiro-chorão, que serviria como testemunha dos dias ao lado daquele romance completo, daquela senhorita que seria sua senhora, da esposa, mãe dos seus filhos, da mulher que porventura dormiria ao seu lado todas as noites, sendo escrava, sendo dele, sendo a dama das Camélias, e a puritana que o desarmaria, mas ainda seria dele.

E tal como num sopro do mundo ela adentrou… Estava perto de partir. Seus pés trêmulos tentaram se fincar ao chão, mas as ondas de memórias futuras se arrastavam por sua mente, consumindo-o, enchendo-o de força, conduzindo-o ao encontro da sua amada, do seu fim, daquela que seria a última boca que ele beijaria. Debruçou um pouco impaciente ao lado dela, tentou se sentar com um pouco de ordem no banco em frente ao balcão. Tateou as palavras, deu-se por vencido. Pensou em poemas, deu-se por esquecido. Contracenou com personagens imaginários, deu-se demitido. Calculou possibilidades, deu-se destemido.

- Estou falecendo, futura senhora.

Um olhar de sobressalto o atingiu como um raio. Ela poderia ficar mais bela do que as pinturas que fez em fração de segundos enquanto caminhava.

- Precisa de ajuda, senhor?

E a voz seguia uma forte tendência que ou o deixaria surdo ou ainda mais apaixonado.

- Falecendo de paixão, de memórias futuras.

- Do que o senhor está falando?

- Eu falo do amor, da incerteza, e da verdade. Acredita no amor?

- Desconfio de homem assanhado.

Levantou-se como um tornado arrancando casas no chão, retirando as raízes de uma família da terra mansa. Ela apenas puxava o mundo em direção a porta, levando tudo consigo, até as futuras memórias. E suas mãos se entrelaçaram. Ele decidido a não perdê-la, afinal, tinha visto toda a história dos dois, não haveria como prosseguir a vida depois de ter sentido o sabor da perfeição nos lábios imaginários dela.

- Eu acredito no amor, desse que chega sem anúncio, sem apito de trem. Amor que se planta a semente assim que nascemos, os dias passam, os anos também, e a flor vai se fortalecendo, até que surge uma mão que arranca de vez, com raiz e tudo, e leva pra longe o fruto de uma vida de dedicação.

- E o que eu lá tenho a ver com suas asneiras, homem?

- Tem que a senhora me deve uma planta, pois eu gastei uma semente, e acaba de arrancar do meu jardim a única flor que havia em mim.

- Tão moço e tão lelé. Olhe, me deixe ou vou chamar o gerente.

E sua mão segurou a dela com mais certeza. E os olhos caíram lentamente, como se lançassem de uma colina para os braços da incerteza, um precipício escuro, temido, mas almejado, caindo sem asas para o laço perfeito de duas mãos que se conheciam. E ela o sentia, ela podia ler as memórias que ele guardava, a vida que teriam, as possibilidades, as lágrimas, os sorrisos, as crianças correndo pela grama verde que serpentearia a casa com cerca branca…

- E eu estava esperando pela senhora…

- Por que insiste em me chamar de senhora? Não sou casada!

- Ainda.

Mais uma vez os olhos obedeceram o chamado de duas almas que se manifestavam. Como se aquele encontro tivesse sido planejado, desenhado na folha do tempo, e agora se realizava em outro mundo, outra vida. Eles apenas se reconheciam, se encaixavam, sem notar, sem perceber que o destino conspirara todo esses anos para que agora, em um lugar qualquer, entre o cheiro de tudo, a incerteza do amanhã, no calor da existência, dois corpos se namoravam, se tocavam.

- Solte-me…

- Prenda-me!

- Insolente!

- Mulata minha!

As mãos não mais atendiam ao repúdio forçado pela insegurança, apenas cediam a força de um dos corpos a puxar o outro para seus braços, sem se importar com uma plateia despreocupada demais com o amor, perdida em suas conversas tolas, como eles fossem apenas mais um casal que se encontrava, se rendia, se saboreava. E por meros lapsos de segundos, ela hesitou, mas a sua alma a empurrava para os braços de um futuro, de um amor sem fronteiras, sem as barreiras que a impediram de ser livre quando mais almejou por asas. Os lábios dele eram a sua liberdade. E os dela, a sua reencarnação. O beijo escondido que por tanto tempo aguardou, agora morria na língua vibrante do enamorado preguiçoso que por tanto tempo a esperou. O café, por fim, vencido pelo tempo, esfriou.

- Faah Bastos

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